Título: Imagens de uma infância perdida
Autor: Bernardo Mello Franco
Fonte: O Globo, 20/03/2006, Rio, p. 16

Crianças contam abertamente como se envolvem com o tráfico, em documentário contundente

Pela primeira vez na TV, um documentário levou para a sala de jantar, em rede nacional, depoimentos de crianças e adolescentes envolvidos no tráfico de drogas. Exibido ontem à noite no "Fantástico", "Falcão - Meninos do tráfico" fez revelações impactantes sobre a entrada de "soldados" cada vez mais jovens no crime. Os menores falaram abertamente sobre consumo de drogas, corrupção policial e assassinato de delatores. O filme de 58 minutos foi produzido pelo rapper MV Bill e pelo produtor Celso Athayde, coordenador da Central Única das Favelas (Cufa).

A dupla captou 217 horas de imagens entre 1998 e 2003 em comunidades de vários estados, que não são identificados. Dos 16 personagens principais, que aparecem com os rostos borrados digitalmente ou escondidos por uma tarja preta, 15 morreram e tiveram os enterros registrados pela equipe. Segundo Athayde, o único sobrevivente está preso.

Do alto de uma favela, um menor apresenta seu material de trabalho: "Isso aqui é o radiocomunicador para avisar os amigo". Na cena seguinte, outro jovem abre a mochila. Em vez de livros, carrega papelotes de cocaína com a imagem do terrorista Osama Bin Laden. "Essa é a carga que movimenta a firma", diz. Minutos depois, cinco jovens desfazem um tijolo de maconha prensada. Uma voz infantil explica a divisão de trabalho: "Tem o que corta, o que desfaz a maconha e o que pesa. Daqui vai pra mão do vapor".

Os falcões - nome dado aos jovens encarregados de vigiar a favela e avisar a chegada de rivais e da polícia - mostram consciência sobre os perigos de trabalhar para o tráfico. Num dos depoimentos mais impressionantes, um garoto de aproximadamente 10 anos fala sobre a falta de perspectivas e a rotatividade dos jovens no crime: "Se eu morrer, nasce um outro que nem eu, pior ou melhor. Se eu morrer vou descansar, é muito esculacho nessa vida".

Depoimento mostra corrupção policial no Rio

O pagamento de propina a policiais é relatado com detalhes. Um dos jovens, com sotaque carioca, explica o acordo na comunidade em que mora: "De dia tem polícia na favela. De noite é arrego (suborno). Se entrar, leva bala". Depois de relatar uma negociação para escapar da cadeia, um garoto arrisca uma teoria para a ineficácia do combate à corrupção policial: "Se o tráfico acabar, eles só vão ter o salário deles, vão ficar massacrados. Então, não vai acabar tão cedo". A truculência das operações surge na fala de outro jovem: "Com 10 anos, levei um tapa na cara. Até hoje guardo isso no coração".

Sem apresentar soluções, o filme busca nos depoimentos as causas para a entrada dos jovens no crime. Além da sedução exercida pelas armas - um falcão diz que seu melhor amigo é um fuzil AK-47 - os menores citam problemas familiares para justificar a opção pelo tráfico. Quase todos reclamam de maus-tratos e abandono em casa. "Meu pai só chegava para bater na gente, estou com 17 anos e nunca tive um aniversário", diz um deles.

O sofrimento das famílias dos jovens traficantes aparece no depoimento da mãe de um rapaz morto em acerto de contas na periferia de uma capital nordestina. Durante a entrevista, chorando, ela abriu pela primeira vez o armário do filho, que investia o dinheiro das drogas em roupas da moda. "A bermuda que ele mais gostava de usar era essa", conta a mulher, que ouviu de casa os dois tiros que mataram o filho. O boné furado pela bala que atingiu a cabeça do garoto, morto enquanto andava de bicicleta, foi guardado pelo melhor amigo, um menino de cerca de 10 anos. Sua explicação para o crime mostra a banalização da violência entre os jovens cercados pelo tráfico: "Ele pegava uns caras de outro setor, batia, batia, mas não matava. Por isso que eu falo: quando pegar, tem que conferir".

A promessa de deixar a vida no crime é quase onipresente nos depoimentos. Um dos personagens, de 17 anos, diz que sonha em se tornar palhaço e planeja entrar numa escola de circo. Um ano depois, a equipe o reencontra no dia do seu aniversário. Ele foi promovido na quadrilha e continua trabalhando para o tráfico.

O filme também aborda o uso de drogas entre os jovens a serviço do tráfico. Um adolescente explica que a cocaína o ajuda a ficar acordado durante o plantão noturno sobre uma laje da favela, mas nega ter se tornado dependente. "Sou usuário, tenho que usar para não dormir. Mas não sou viciado, não. Se eu quiser, eu paro", garante. Além de cocaína, o documentário registra o uso de crack, droga que, segundo policiais, ganhou força nos morros cariocas nos últimos anos.

Quase todas as imagens foram registradas à noite na câmera digital da dupla. Segundo Athayde, a maior parte das imagens foi feita durante turnês de Bill, que se apresenta em comunidades de todo o país.

Seis mil crianças-soldados

Pesquisas mostram efeitos da convivência com a violência

Uma pesquisa feita pelo antropólogo Luke Dowdney, transformada no livro "Crianças no tráfico" em 2003, mostrou que cerca de seis mil crianças e adolescentes do Rio são considerados soldados do tráfico, usam armas como fuzis, metralhadoras e até granadas, e participam de confrontos com a polícia ou da disputa por pontos de droga em favelas. O estudo, feito entre 1987 e 2001, também entrevistou crianças e adolescentes, entre 12 e 23 anos que trabalhavam para o tráfico. Eles disseram, por exemplo, achar normal matar ou ser mortos por companheiros em caso de cometerem falhas.

Um estudo da Unesco mostrou que, entre 1993 a 2002, os homicídios entre jovens de 15 a 24 anos cresceram 88,6% no país. Na população em geral, o crescimento foi de 62,3%. Na pesquisa, o Rio aparece em primeiro lugar, tanto nos índices de assassinato da população em geral quanto no de violência contra jovens.

A realidade das telas

Cenas desconcertantes com traficantes e crianças já foram filmadas por João Moreira Salles e Kátia Lund, que lançaram em 1998 o documentário "Notícias de uma Guerra Particular". O filme retrata o cotidiano no Morro Dona Marta, em Botafogo, e mostra um garoto de 10 anos dizendo ter prazer em estar perto da morte e um policial que se orgulha em matar.

A violência do tráfico e o dia-a-dia de uma favela também aparecem em "Cidade de Deus", de Fernando Meirelles. Lançado em 2002, mostra a trajetória de personagens como o traficante Zé Pequeno e o aprendiz de fotógrafo Buscapé. Em 2000, no clipe "Soldado do Morro", do MV Bill , aparecem traficantes armados, crianças aparecem brincando com armas de madeira e o próprio rapper segurando um fuzil AR-15.

"Se eu morrer, nasce um outro que nem eu, pior ou melhor. Se eu morrer vou descansar"

Um menor

Falando sobre a violência

"Se o tráfico acabar, eles só vão ter o salário deles, vão ficar massacrados"

Outro menor

Falando sobre a polícia