Título: Choque de vida real provoca reflexão
Autor: Alessandro Soler, Mariana Belmont e Simone Mousse
Fonte: O Globo, 20/03/2006, Rio, p. 17

Filme provoca reações diversas em antropólogos, educadores e sociólogos

O documentário provocou reações bastante diferentes entre especialistas. Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Direitos Humanos, a exibição de "Falcão" na noite de ontem foi histórica e deve ter repercussões até mesmo sobre políticas públicas, na medida em que "rompeu com as simplificações maniqueístas associadas a esses meninos, humanizando-os". Opinião similar tiveram o presidente da seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Otávio Gomes, e a inspetora Marina Maggessi. Já a artista plástica Yvone Bezerra de Mello, da ONG Uerê, que desde os anos 90 assiste crianças de rua, disse temer que o documentário tenha efeito oposto ao pretendido:

- Pode acirrar mais o ódio. Cada vez que alguém vir uma criança de rua vai ficar com mais raiva. As pessoas não ficam mais indignadas. Estão anestesiadas. Há 20 anos se debatem soluções, mas o problema só piora. O ódio e o medo do outro é generalizado. As crianças temem a polícia, que se comporta como os bandidos. A classe média teme essas crianças, por achar que são todas bandidas. Isso parece não ter fim.

Socióloga também vê lado educativo no filme

A antropóloga Alba Zaluar ponderou que é preciso abordar o flagelo social também sob outros aspectos.

- Se ficarmos só nas crianças do tráfico vai parecer que o mal está só ali, com elas. É preciso mostrar também outros lados, como por exemplo as quadrilhas formadas por ex-policiais e até mesmo a atuação da polícia, que deixa a desejar - propôs. - Acho que MV Bill quis alertar as pessoas e os próprios meninos do tráfico. Este é um barco furado. Por este lado o documentário é positivo.

Assim como Luiz Eduardo, o sociólogo Ignácio Cano e o professor Jaílson de Souza e Silva, coordenador do Observatório de Favelas, consideraram o documentário positivo por humanizar as crianças ligadas ao tráfico. A despeito disso, Cano disse não crer que o impacto causado por "Falcão" será muito grande:

- Esse tipo de imagem já está no inconsciente coletivo das pessoas, só vai confirmar o que elas já sabem. Mesmo assim é positivo, também por mostrar que este fenômeno não está só no eixo Rio-São Paulo. A escala maior é aqui, mas outras cidades estão no mesmo caminho, como Recife e Vitória.

Souza e Silva avaliou como inédita a abordagem. De acordo com ele, "Falcão" pode, sim, provocar muita reflexão.

- Esses meninos sempre são mostrados de uma maneira sensacionalista, como se fossem seres exóticos, com fuzis em punho. Na verdade estão muito mais próximos de nós do que costumamos pensar. O critério para esses meninos entrarem no tráfico é o desejo de consumir, de ter poder e visibilidade - lembra.

Antropólogo crê em mudanças na sociedade

Luiz Eduardo, que já havia assistido ao documentário, foi na mesma linha:

- "Falcão" é uma ponte entre esses garotos e a sociedade. Eles são reduzidos sempre à simples expressão da violência. Agora, deixam de ser rótulos, guerreiros do mal com suas armas, e passam a ser seres humanos, que expressam a falta do pai, os traumas. São seres contraditórios como todos nós. Deixando de lado o estigma, dando voz aos meninos com paciência, generosidade e abertura, o filme provocará um resultado na sociedade. Todos nós nos co-responsabilizaremos, em vez de pedir que sejam executados.

Para o antropólogo, o destino dos protagonistas da obra - dos 16 meninos, apenas um ainda está vivo - é uma síntese da realidade das favelas.

- Um dia espero que esse genocídio, sobre o qual sequer há estatísticas confiáveis, não seja mais visto sob números frios. O documentário abre uma porta para chegarmos perto dessas vítimas.

O sociólogo Michel Misse, diretor do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da UFRJ, afirmou que o documentário abre uma importante discussão sobre o modo como o varejo das drogas afeta de modos muito distintos cada classe social.

- A questão é social, uma tragédia que acompanha a estagnação da economia, o esvaziamento do Rio e de outras cidades. Nas elites o varejo das drogas não é sinônimo de genocídio. O tráfico é uma tragédia para as populações urbanas pobres. Os jovens das favelas que não têm escola ou trabalho são vulneráveis.

Otávio Gomes, da OAB-RJ, igualmente destacou o papel educativo do documentário.

- Temos mesmo que mostrar a realidade nua e crua. Sei que é cruel, uma coisa estarrecedora, mas é a nossa realidade. Este documentário é imprescindível para que o governo parta para ações mais efetivas - avaliou Gomes.

Inspetora diz que filme mostra lógica do tráfico

A inspetora Marina Maggessi, que assistiu ao documentário na casa do cineasta Cacá Diegues, a convite de MV Bill, fez coro. Para ela, a sociedade poderá entender melhor a lógica do tráfico com uma visão de dentro para fora.

- Matar bandido não é a solução, temos que fazer com o que ele não nasça. Movimentos como AfroReagge e a Central Única das Favelas são muito mais importantes do que dez batalhões numa favela - afirmou. - As crianças falam mal mesmo da polícia, têm ódio. Evidenciam a cultura da polícia violenta, que infelizmente existe, em todo o país. As pessoas têm que olhar o bandido e o policial como pessoas que têm a mesma origem. Ninguém é só bom ou mau.

Presidente da ONG Viva Rio, o sociólogo Rubem Cesar Fernandes afirmou que o trabalho tem o mérito de dar voz a pessoas que só aparecem mortas ou presas.

- Eles conversaram com os caras. É preciso que todos possam falar. A realidade de guerra das favelas brasileiras, com crianças soldados, é tema de debate na ONU e em outros órgãos internacionais. A ONU tem o programa Desmobilização, Desarmamento e Reintegração (DDR), que é implantado nos países em guerra como o Haiti e vem dando certo. Esta é a prova de que há solução para este problema. Acho que o documentário vai gerar um debate mais inteligente sobre esse assunto.

Livro conta bastidores da filmagem

MV Bill e Celso Athayde registraram os bastidores do documentário em "Falcão - Meninos do tráfico" (Record), que chega hoje às livrarias. Os autores vão entregar um exemplar à inspetora Marina Maggessi na Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE). O livro conta as dificuldades da dupla para conquistar a confiança dos jovens envolvidos com o crime sem atrair a atenção da polícia durante as gravações em favelas de vários estados. Em 12 de outubro, Dia da Criança, chega aos cinemas uma versão de duas horas do filme.

Trecho inédito

"Cumprimentamos todos na sala, um a um. Os caras estavam sentados no chão, em pufes, alguns sem camisa e encostados nas paredes. As armas estavam espalhadas sobre um lençol colorido, ao lado de uma TV imensa que ficava sobre um banquinho de cerejeira. O medo me fazia ter certeza que a polícia ia chegar naquele momento, e, por pensar nisso, o medo aumentava. E quanto mais o medo aumentava, mais e mais medo eu sentia. Comecei a lembrar as velhas fofoqueiras que nos viram entrar, o porteiro que podia estar escondido. (...) E se a polícia entrasse lá, prendesse os caras e eu estivesse no hotel? Eu certamente acabaria acusado e nem Jesus Cristo conseguiria convencer os caras de que eu era inocente".

TRECHO INÉDITO DO LIVRO "Falcão - Meninos do tráfico"

"As crianças falam mal mesmo da polícia, têm ódio. Evidenciam a cultura da polícia violenta."

MARINA MAGESSI

Inspetora da Polícia Civil

"O filme provocará resultado. Nos co-responsabilizaremos em vez de pedir que sejam executados."

LUIZ EDUARDO SOARES

Antropólogo