Título: RECAÍDA AUTORITÁRIA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 21/03/2006, O País, p. 4

Mais uma vez revela-se o caráter autoritário do governo petista no episódio da quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, e ficamos todos indignados e impotentes diante de tamanha afronta aos direitos individuais, praticado no mínimo com a conivência da Polícia Federal, onde o caseiro estava na hora em que o extrato foi tirado, e da Caixa Econômica Federal, única fonte para a obtenção da senha, já que o próprio titular da conta não a forneceu.

Seria a inaceitável instalação de um estado policial, que já havia sido vislumbrado pela Ordem dos Advogados do Brasil quando entrou em uma batalha contra o Ministério da Justiça contra a atuação da Polícia Federal nos escritórios de advocacia em vários pontos do país, a pretexto do combate à corrupção.

Escutas telefônicas, conseguidas através de subterfúgios, eram a ponta do iceberg de um processo investigativo tão popular quanto duvidoso. O ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, precisa fazer mais do que simplesmente lamentar o que aconteceu. Precisa mostrar claramente que o governo não compactua com esse tipo de procedimento, pois até o momento a sensação é de que um fato desses só ocorre quando o agente do estado, se não recebeu orientações nesse sentido, tem certeza da impunidade.

A informação de que o extrato do caseiro Francenildo já circulava entre políticos e autoridades petistas antes de ser publicado pela revista ¿Época¿ reforça a idéia de que se tratava de uma estratégia oficial para desmoralizar o testemunho contra o ministro da Fazenda Antonio Palocci. Testemunho, por sinal, que só tem relevância por indicar que o ministro freqüentava a casa onde lobistas amigos de longa data faziam negócios, o que sugere que o faziam com o seu beneplácito, o que é preciso investigar. E não por outras utilizações que eventualmente tivesse o ¿aparelho¿.

O projeto de reeleição do presidente Lula, que no início do governo parecia favas contadas, sofreu considerável contratempo com o resultado da eleição municipal de 2004, de cujas urnas o PSDB saiu com uma vitória política expressiva, em que pese o PT ter ampliado sua penetração no interior do país. Na ocasião, o presidente do PT, José Genoino, identificou como razão principal da derrota petista o que classificou de ¿uma bem sucedida campanha da oposição¿ para instalar no país um clima anti-petista, cuja base seria um autoritarismo do partido, que ele negava.

O autoritarismo do PT não se expressava apenas nas alianças políticas literalmente compradas, como depois ficou provado com as denúncias sobre o mensalão, mas em tentativas de controlar a imprensa e as produções culturais, com a criação de conselhos estatais, e em declarações de ministros que deixariam à mostra uma face política radical que estaria apenas aguardando um bom momento para se manifestar mais claramente.

Nunca é demais lembrar que ex-presidente do PT Tarso Genro, por exemplo, cogitado para coordenar a campanha de reeleição de Lula, defende no seu livro ¿A Esquerda em progresso¿, a democracia direta à la Hugo Chávez, com a ¿exacerbação da consulta, do referendo, do plebiscito e de outras formas de participação¿, e o controle dos meios de comunicação através de ¿conselhos de Estado¿.

A cada explicitação desse caráter autoritário, desfaz-se a imagem do ¿Lulinha Paz e Amor¿, criação imortal de Duda Mendonça, e aumenta o temor do que seria o ¿verdadeiro PT¿ num eventual segundo governo Lula. A classe média, que abandonara Lula num primeiro momento, voltou a flertar com ele a partir dos bons resultados da economia.

Mas, se é verdade que a maior parte das decisões de voto é motivada por valores, é previsível que, diante de novas manifestações de autoritarismo do governo Lula, e com a opção do tucano Geraldo Alckmin agora colocada à sua disposição, a classe média reflua de uma posição quase oportunista devido ao dólar barato, que lhe permite usufruir viagens internacionais e importados (a popular Bolsa-Miami), e volte a emitir sinais de que teme esse DNA petista.

Assim como, para chegar ao poder, Lula teve que ampliar suas alianças a ponto de buscar apoios nas oligarquias nordestinas do PFL e do PMDB, e agora evolui com desembaraço para o populismo mais escrachado, terá que deixar de lado antigas alianças com movimentos sociais como o MST, ou com a esquerda socialista, para governar com setores mais amplos da sociedade.

Se não o fizer, correrá o risco de ver-se rejeitado pelo mesmo eleitorado que o fez pela primeira vez superar os 30% de votos em que se situava historicamente. Antigos temores da classe média com relação ao governo do PT voltam à tona com as invasões de terras que o MST retomou. A falta de ação do governo para coibir esse ¿verão vermelho¿ é sinal de que a cumplicidade com os sem-terra não dá espaço para o uso da lei.

A rejeição da classe média ao governo se deve também à ineficácia da administração, e já se manifesta novamente nas pesquisas de opinião, que voltam a registrar o declínio da aprovação ao governo e à maneira de Lula governar. Há também a repulsa à utilização da máquina administrativa, à partidarização das repartições públicas, que ficou patente agora nesse episódio do caseiro.

Todos esses fatos levaram a um declínio da popularidade de Lula, do qual ele se recuperou no que já está sendo chamado de ¿descanso do verão¿. A retomada da ofensiva oposicionista, e o surgimento de novos fatos envolvendo o governo, abrem perspectivas novas na corrida eleitoral.

Mesmo assim, até o momento o desfecho da campanha eleitoral parece depender mais de Lula que de Alckmin. O candidato do PSDB não tem qualidades para empolgar, mas pode ser uma alternativa se Lula voltar a perder a confiança do eleitorado.