Título: GREVE DO PRIVILÉGIO
Autor:
Fonte: O Globo, 21/03/2006, Opinião, p. 6

Impossível identificar qualquer vestígio de boa-fé na desesperada resistência de setores do Judiciário à continuação da reforma ¿ exigida, cada vez com mais impaciência, pela sociedade brasileira ¿ que visa, acima de tudo, a preservar a imagem de um poder que, para cumprir seu papel, precisa ser visto com a máxima transparência e confiança pela opinião pública.

Só a defesa impudente de práticas administrativas obscuras e de privilégios inadmissíveis numa democracia moderna pode explicar atitudes imoderadas como a ameaça de paralisação anunciada pelos 117 desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em protesto contra a proibição do nepotismo pelo Conselho Nacional de Justiça e o cumprimento da decisão constitucional que limita os salários dos juízes em R$24.500.

Que espécie de lógica pode haver no argumento, usado por desembargadores rebeldes, de que o CNJ ¿ um dos primeiros, e mais importantes, frutos da reforma do Judiciário ¿ ultrapassa suas atribuições ao proibir o nepotismo? Por que a contratação de parentes seria matéria interna do Judiciário ou de qualquer outro poder? O combate a privilégios é, óbvia e cristalinamente, uma questão de saneamento moral, e deve ser travado sem descanso em todos os desvãos do serviço público.

Em nome de quem falam os magistrados insatisfeitos quando dizem que em Minas a resolução do CNJ ¿ primeiro grande teste de sua força e seriedade ¿ não será cumprida, se ela tem o respaldo do Supremo Tribunal Federal e reflete, rigorosamente, o desejo de mudança da sociedade brasileira?

A rigor, a disputa não teria atingido tal grau de exacerbação se os desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas prezassem e respeitassem, como seria de esperar de membros do Judiciário, os princípios da moralidade e da impessoalidade da administração pública, como está no artigo 37 da Constituição.

E, last but not least, a revolta contra a fixação de um teto salarial de valor tão elevado para a realidade brasileira revela, como já se disse, uma inconsciência social que está longe de angariar simpatia e apoio para a indefensável causa dos desembargadores rebeldes.