Título: MENOS POLÍTICA
Autor: JULIO SERGIO CARDOZO
Fonte: O Globo, 21/03/2006, Opiniao, p. 7

A proposta de integração da América do Sul tem recebido a merecida atenção dos países do continente. Alguns governos entenderam a importância de um trabalho cooperativo, em diversos sentidos, que fortaleça as condições de negociação da região no cenário geopolítico e econômico global. A queda das antigas barreiras contra a formação de mercados continentais comuns levou os governantes a pensar, de forma coletiva, no futuro de seus países. O presidente Lula tem conduzido satisfatoriamente o Brasil no processo de integração da América do Sul e de ampliação dos domínios do Mercosul. Por seu carisma nato, ele parece ser a liderança apropriada para convencer os demais chefes de Estado de que o isolamento não ajuda qualquer país a crescer e somente alimenta um nacionalismo ultrapassado.

O governo brasileiro, por exemplo, teve o mérito de unir, em torno de interesses comuns como o combate ao narcotráfico, países como Colômbia e Venezuela e, assim, trabalhar para ampliar o desenvolvimento social dos países sul-americanos. Ao mesmo tempo, demonstrou avanços em sua política econômica externa, especialmente após as vitórias consecutivas, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), nas ações para entrada da cana-de-açúcar e do frango salgado na União Européia, e do algodão, nos Estados Unidos. O desempenho animador das exportações, em 2005, só não foi maior por ocasião de fatores alheios como a febre aftosa e de um cenário interno instável, marcado por crise política e crescimento do PIB abaixo do esperado.

Neste ano de 2006, quando as disputas eleitorais pautarão a maioria dos acontecimentos do país, o desafio do governo brasileiro será o de estabelecer internamente e, principalmente, com o restante do continente americano ¿ do norte do Canadá ao sul do Uruguai ¿ um debate mais técnico e menos político para a questão da integração. O ingresso, por exemplo, da Venezuela como membro pleno do Mercosul tem sido visto como uma decisão meramente política que pode, inclusive, azedar as relações dos outros membros do bloco com a maior potência do mundo, dado o conhecido discurso antiamericano de seu presidente Hugo Chávez. Por isso, em meio a discussões homéricas sobre o formato ideal do processo de unificação, também caberá aos países certa dose de boa vontade em buscar, juntos, soluções para não incorrer nos mesmos erros da década passada, que impediram o amadurecimento do Mercosul e da ALCA, que sob as condições atuais pouco interessa ao Brasil.

Da forma como está estruturada, a ALCA apenas reorganiza a hegemonia dos Estados Unidos na região e condena as economias dos países emergentes a abandonar toda perspectiva de crescimento econômico sustentável. Os norte-americanos, além de determinados países do Cone Sul da América, ainda não acordaram para o fato de que o maior inimigo, no tabuleiro global, não está dentro de casa, mas, sim, na Europa, com seus elevados subsídios, e na Ásia. É fundamental, nesse contexto, que as discussões deixem de lado a simples configuração destes blocos regionais e se ampliem para a estruturação de um grande grupo continental das Américas, representado pela união dos membros da ALCA, do Pacto Andino e do Mercosul.

É preciso criar, neste momento, as bases para a formação, no futuro, de um Mercado Comum Americano (MCA), formado por 30 países, 500 milhões de consumidores e PIB de US$14 trilhões. Tal integração nos capacitará a competir, nas diversas áreas da economia e do conhecimento, em igualdade com a União Européia (UE) e os grupos pan-asiáticos, como a recente comunidade Asean, representada por China, Coréia do Sul, Japão, Índia, Austrália e Nova Zelândia, que juntos reúnem mais da metade da população mundial.

O desafio da integração passa pelo fim de fronteiras econômicas e pela criação de uma legislação aduaneira de fato sinérgica entre os países que facilite o trânsito de mercadorias, além de legislação de impostos e contribuições similar nos países. A união de esforços implica também política de serviços profissionais comuns que garantam o intercâmbio facilitado e de baixo custo de mão-de-obra, conhecimentos e tecnologia entre os países integrantes.

Por fim, e não menos importante, é preciso encontrar alternativas para os elevados subsídios, por exemplo, dos EUA e da União Européia para a agricultura, de forma a tornar nossos países um celeiro de grãos para o mundo. Será a condução apropriada dessas questões ligadas à política externa por parte do governo brasileiro, em 2006, que poderá carimbar o passaporte de Lula e de sua equipe econômica para a história do continente americano.

JULIO SERGIO CARDOZO é presidente da Ernst & Young na América do Sul.