Título: TOGAS EM GREVE
Autor: Luiz Garcia
Fonte: O Globo, 21/03/2006, Opinião, p. 7

Agreve de um dia é ato simbólico: pouco prejuízo causa a réus e litigantes. Está aí uma circunstância atenuante da paralisação decidida pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Parece ser a única.

Eles se rebelam contra o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. O primeiro proibiu o nepotismo nos tribunais do país. O segundo decretou um teto de R$24.500 para os salários dos juízes de todo o país.

No primeiro caso, foi uma proibição inicialmente draconiana mas depois amenizada ¿ o que torna mais difícil compreender a rebelião. Parentes concursados ou admitidos antes da existência de concursos mantêm seus empregos. E também parentes de juízes aposentados e ex-cônjuges. É difícil encontrar justificativa para os nepotes que sobram. O pior talvez seja que, se prevalecer a atitude belicosa dos desembargadores mineiros, o nepotismo nos demais poderes da República ganhará uma força que com certeza não merece.

Quanto aos salários, o STF, ao criar o teto de R$24.500, derrubou um privilégio que beneficiava juízes em penca pelo país afora. No Maranhão, o teto era de R$40 mil mensais. Em Minas, alguns salários estão na casa dos R$30 mil. Matematicamente, um dos dois níveis é injusto. À luz de um levantamento nacional, provavelmente ambos. Seja como for, a imposição de um teto ¿ idéia que não surgiu agora ¿ é moralizadora por princípio.

Os argumentos para a revolta contra as medidas atingem nível que só a emoção justifica. Um desembargador mineiro comparou o STF e o CNJ a Hitler e Mussolini, e definiu a decisão do Supremo como algo que não se via desde o AI-5. Espera-se de um juiz que, mesmo ao discordar de seus superiores, não procure desmoralizar o próprio Poder Judiciário.

Por seu lado, o presidente do Tribunal de Justiça afirmou que diversas decisões do CNJ ¿não respeitam as cláusulas pétreas da Constituição¿. É difícil entender que um magistrado tenha perdido a confiança no Judiciário brasileiro, a ponto de considerar que ato tão aberrante (pelo menos em sua opinião de jurista) não venha a ser inevitavelmente derrubado nas últimas instâncias da Justiça.

Tem mais: se o teto salarial for mantido pelo STF, o Tribunal de Justiça anuncia outras greves ¿ certamente, não simbólicas.

Há quem acredite que, como em alguns outros países democráticos, deveriam existir restrições a greves de servidores públicos. Diferentemente dos funcionários de empresas, a greve não lhes rouba a estabilidade. Pior, não prejudica o alvo das queixas, e sim priva a massa dos cidadãos de serviços a que têm direito inalienável. É possível ver com alguma simpatia a paralisação do trabalho de funcionários mal pagos em busca de salários decentes ¿ mas não é possível esquecer que essas ações prejudicam, freqüentemente, cidadãos tão humildes quanto os grevistas.

Será bem mais difícil entender se juízes fecharem por tempo indeterminado as portas dos tribunais a cidadãos que ganham uma fração ínfima dos R$24.500 decididos pelo STF.

Espera-se que nunca aconteça. Homens com a formação e o nível intelectual da maioria dos juízes brasileiros certamente perceberão que estariam manchando suas próprias togas ao parar de trabalhar para forçar a recuperação de benefícios pessoais.

Principalmente se a paralisação negar a cidadãos comuns o direito sagrado de se beneficiarem do funcionamento ininterrupto de um sistema judiciário competente, ágil ¿ e no qual bom senso e saber jurídico jamais sejam derrotados por hipérboles ofensivas.