Título: Visão de mundo
Autor: Míriam Leitao
Fonte: O Globo, 21/03/2006, Economia, p. 22

Quando Felipe González se tornou presidente da Espanha, a renda per capita do país era de US$4.500; quando saiu, 14 anos depois, era de US$15 mil. Hoje é de US$25.000. Ele iniciou o movimento que levou a Espanha, de economia emergente, a ser um dos países centrais. González avalia que Brasil e América Latina têm uma grande chance neste momento, mas teme que a região possa perder a oportunidade.

Fora do poder há dez anos, o ex-presidente se dedica hoje, na Fundação Calidad Democrática, a pensar estratégias de crescimento econômico. Com uma extensa rede de contatos com líderes mundiais, ele se mantém extraordinariamente atualizado. Conversar com Felipe González é ter uma visão abrangente sobre os desafios do mundo.

Um dos seus estudos recentes foi sobre as diferenças de produtividade entre Europa e Estados Unidos. Ele contou que há dez anos, num diagnóstico feito por líderes europeus, chegou-se à conclusão de que a educação não era o problema, porque o sistema educacional europeu seria melhor que o americano. Ele discorda:

¿ De 1980 a 2000, os Estados Unidos deram um salto ao incorporar os avanços tecnológicos que permitiram aumento de produtividade. A Europa perdeu competitividade. Uma das razões disso é que o sistema educacional americano prepara para o risco, e o da Europa apenas transmite o conhecimento acumulado. Os Estados Unidos incentivam a inovação, a Europa cria uma atitude passiva. Na Europa, não surge o Bill Gates; uma nova grande empresa não nasce numa garagem.

Além de uma reforma da educação, Felipe González acha que a Europa tem que ter mais mobilidade no mundo empresarial:

¿ Se compararmos a lista das 30 maiores empresas americanas de 1980 com a lista atual, vamos ver que de 15 a 18 empresas perderam este posto. Na Europa, são as mesmas 30.

O que produz este congelamento da elite empresarial na Europa não é a eficiência, mas, sim, um conluio entre a cúpula política e as lideranças empresariais e de trabalhadores para manter o poder.

A América Latina perdeu importância relativa desde o 11 de Setembro porque não é vista como um risco. É uma contradição, alerta, porque deveria ser fator de atração de investimento. Este é um momento especialmente oportuno para a região na economia mundial, mas os países não estão sabendo aproveitar:

¿ Energia e recursos naturais estão com preços muito altos e eles continuarão elevados. Há uma crise de oferta no mundo. A China vai dobrar seu consumo de energia até 2013. Antes, o mundo desenvolvido importava matérias-primas baratas e vendia produto final com preços altos. Com a tecnologia da informação, o preço da descoberta de um novo produto é alto, mas depois ele vira commodity e o preço cai. A situação se inverteu em favor dos produtores de matérias-primas.

Para Felipe González, a América Latina não está sabendo aproveitar esta onda. A Venezuela está ganhando muito com os novos preços do petróleo, mas não está usando isso como alavanca para o crescimento. Há novas fraturas sociais na região, entre países, entre etnias. O México cresceu no ano passado apenas o que agregou o aumento do preço da matéria-prima. O Brasil cresce pouco e, entre os vários obstáculos que tem, um deles é a taxa de juros:

¿ A Alemanha tem a mesma dívida/PIB do Brasil e se financia com juros negativos. O Brasil paga juros reais de 12% ao ano. Não encontro nenhuma justificativa macroeconômica para juros deste tamanho ¿ diz.

Outra barreira daqui é o excesso da carga tributária e uma estrutura complexa de impostos.

¿ Eu fiz uma reforma tributária que, só com a criação do imposto sobre valor agregado, eliminou 24 impostos.

Felipe González diz com orgulho uma coisa que, no Brasil, parece heresia: afirma que aumentou os gastos. Acha que o fez nas questões certas: educação, saúde e infra-estrutura. Ele acha que este é o caminho: aumentar os gastos e criar um ambiente favorável ao investimento privado. Os impostos, quando excessivos, produzem o oposto do que deveriam, porque matam a atividade que geraria a arrecadação.

Ele deu o exemplo do turismo:

¿ Turismo de sol e mar é commodity, tem oferta mundial. A diferença é qualidade e preço. Se os impostos são altos, perde-se a oportunidade de receber o turista e não ocorre o fato que recolheria o imposto.

A Espanha sempre teve um grave problema de desemprego que agora começa a diminuir. O ex-presidente aprendeu uma coisa: não adianta o governante prometer emprego.

¿ No primeiro governo, prometi criar 800 mil empregos e perdemos 800 mil empregos. No segundo, não prometi nada e foram criados 1,3 milhão.

O mundo está numa fase de crescimento, mas há perigos à vista: a estagnação da Europa; a liderança errática e equivocada dos Estados Unidos; os desequilíbrios potenciais da China; na América Latina, todos os movimentos de integração regional estão em crise. O conflito do Oriente Médio é provocado menos pela religião e mais pelo fato de que metade da energia mundial está lá. No Irã, ameaçado agora pelos Estados Unidos, 40% do PIB estão nas mãos das fundações religiosas, controladas pelos aiatolás. E a África? A África continua esquecida.

¿ Apesar de tudo, há uma oportunidade muito grande para o Brasil, pelo excesso de liquidez, pela alta dos preços de commodities, pelo crescimento mundial. Seria uma estupidez não aproveitar esta chance ¿ alerta Felipe González.