Título: Interpretando a nota da Fazenda
Autor: Ribamar Oliveira
Fonte: O Globo, 13/03/2006, Economia & Negócios, p. B2

É louvável o esforço que o secretário do Tesouro Nacional, Joaquim Levy, está fazendo para qualificar o debate sobre a política fiscal. Ele está colocando à disposição do público, por meio do sítio de sua secretaria na internet, dados cada vez mais completos sobre as despesas públicas. Na semana passada, ele brindou o País com um estudo sobre a composição do gasto público federal em 2005. Não há novidade nos números, pois todos já tinham sido divulgados nos relatórios mensais do Tesouro. O surpreendente é Levy ter mostrado que o crescimento real do salário mínimo em 2005 explica uma parte substancial do aumento dos gastos públicos federais. Os especialistas sabiam disso. O inusitado é que essa realidade seja explicitada agora pelo Ministério da Fazenda.

No estudo, que foi apresentado como nota oficial do Ministério da Fazenda, Levy mostra que as despesas associadas a benefícios (da Lei Orgânica da Assistência Social, do seguro desemprego, do abono salarial e da Previdência Social), que sofrem impacto direto do mínimo, cresceram 16,7% em termos nominais em 2005, quando comparadas com 2004. "Essa taxa é aproximadamente 80% maior que a do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) nominal médio de 2005 (9,4%)", diz o estudo. Em termos reais, esses benefícios cresceram 6,5%.

Levy destaca também o forte crescimento das despesas no ano passado provocado pela renegociação das dívidas agrícolas e por causa de outros subsídios e subvenções econômicas, associados a antigas dívidas. Informa que as despesas com o funcionamento do Legislativo e do Judiciário cresceram 18,5% e que as chamadas despesas discricionárias, aquelas sobre as quais o governo tem autonomia, subiram 15%.

O mais surpreendente foi o secretário ter afirmado - em desacordo com o discurso oficial - que os investimentos praticamente não apresentaram crescimento real no ano passado: a expansão nominal foi de apenas 10%, ligeiramente superior à do PIB. Ou seja, mais uma vez todo o forte aumento de receitas federais não beneficiou os investimentos.

Em 2005, o aumento real do piso foi de 9%. Este ano, o aumento será de 11%. Por isso, Levy alerta, em seu estudo: "O crescimento das despesas em 2006 deverá seguir padrão semelhante, com maior ímpeto nas despesas com benefícios. Em particular, os benefícios cujo valor é associado ao salário mínimo deverão crescer na proporção do aumento do salário mínimo a ser votado no Congresso, mais um crescimento histórico da ordem de 2%-3% ao ano".

O estudo coloca implicitamente uma questão sobre a qual a sociedade brasileira terá que decidir em futuro próximo: ou ela aceita desvincular o salário mínimo dos benefícios previdenciários e assistenciais, ou o governo não poderá mais conceder aumentos para o piso salarial acima do crescimento do PIB. É óbvio que Levy está dizendo, em sua nota técnica, que a atual trajetória de aumento do mínimo, junto com o mecanismo da vinculação, é incompatível com o controle dos gastos e com a decisão do governo de elevar os investimentos públicos.

Em recente estudo para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o economista Fabio Giambiagi mostrou que foram as despesas com o INSS, a LOAS e a renda mensal vitalícia (RMV) que mais cresceram nos últimos anos (ver tabela abaixo). Elas passam de 5,04% do PIB em 1995 para 8,03% do PIB em 2005. As outras despesas, excluindo as transferências a Estados e municípios, passaram de 9,05% para 9,28% do PIB no mesmo período. Ou seja, o aumento dos gastos com benefícios explicam quase toda a expansão das despesas da União.

É importante observar que Giambiagi incluiu em "outras despesas", os gastos com o programa bolsa família, que não existia na década de 1990, e que atingiram 0,32% do PIB em 2005. O governo foi obrigado, portanto, a reduzir outros gastos, como, por exemplo, aqueles relacionados com os funcionários públicos federais, para acomodar a expansão do bolsa família.

Giambiagi espera que o próximo presidente, quem quer que seja ele, mande ao Congresso uma proposta de desvinculação do salário mínimo de todos os benefícios. O salário mínimo não seria mais referência de nada. Na proposta, o governo se comprometeria a manter os valores reais dos benefícios.

A alternativa à proposta de desvinculação seria a decisão de não conceder mais aumento para o salário mínimo superior ao crescimento do PIB. No início do governo Lula, alguns setores do PT articularam uma proposta que previa aumento para o mínimo equivalente ao crescimento real do PIB per capita. Essa regra chegou a ser colocada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Depois, esse discurso foi abandonado pelos petistas.

O desafio do próximo governo é abrir espaço no Orçamento da União para os investimentos em infra-estrutura e para maiores gastos com educação básica, sem aumentar ainda mais a carga tributária brasileira. Essa equação só fecha com o controle das despesas correntes afetadas direta ou indiretamente pelo salário mínimo.