Título: DIREITOS PRESERVADOS
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 23/03/2006, O País, p. 4

O que ficou consagrado ontem no julgamento do Supremo Tribunal Federal que manteve a verticalização para as eleições deste ano foi a necessidade de haver segurança jurídica no país. Para muito além da análise formal sobre o poder do Congresso de alterar a Constituição, ficou explicitada na maioria dos votos dos ministros do Supremo a impossibilidade de descumprir a exigência a Constituição da anterioridade de um ano da eleição para as mudanças na legislação.

Embora não estivesse em julgamento, ficou claro no voto de vários ministros que até mesmo é possível ao Congresso reduzir esse prazo legal, desde que a emenda à Constituição seja feita um ano antes da data marcada para a eleição.

"O Congresso pode muito, mas não pode tudo em matéria constitucional", frase do ex-ministro do Supremo e ex-senador Paulo Brossard, que defendeu o Congresso no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, foi citada pelo ministro Celso de Mello durante o seu voto, para deixar claro que não havia nenhuma animosidade contra o Congresso na decisão do Supremo, mas apenas os limites da lei.

O ministro Gilmar Mendes deu exemplos claros de como uma mudança constitucional feita fora dos prazos pode alterar o equilíbrio partidário nas eleições. Disse que uma eventual maioria parlamentar poderia impingir a adoção do voto distrital, ou aumentar as cláusulas de barreira para os partidos, exigindo um índice de votos que inviabilizaria muitos pequenos partidos.

Até mesmo a questão da representação nacional dos partidos políticos, base da interpretação que, em 2002, levou o TSE a exigir a verticalização das coligações, foi rebatida pelo ministro Marco Aurélio de Mello, que defendeu a autonomia partidária, uma tese que, em nível político, sempre foi defendida pelo senador Marco Maciel. O senador de Pernambuco acha que, em uma federação, os estados deveriam ter autonomia para fazer suas coligações.

O deputado federal Miro Teixeira, o grande vencedor político da disputa que terminou ontem no Supremo Tribunal Federal, rebate a tese, lembrando que não somos uma confederação, e por isso nossa legislação é federal. Somente uma emenda constitucional daria autonomia aos estados, que poderiam ter leis próprias, como nos Estados Unidos.

Miro foi dos poucos políticos, talvez o único, que se rebelou contra a decisão do Congresso de aprovar a mudança da legislação fora do prazo legal. Ele, que foi quem fez a consulta ao TSE em 2002, continua sendo a favor do que chama de coerência das coligações, mas desta vez se batia não pela tese da verticalização, mas pela garantia dos direitos individuais.

Teve sua tese apoiada pela OAB na ação direta de inconstitucionalidade, e coroada de sucesso em alguns votos, que destacaram que a mudança fora do prazo legal feria direitos do eleitor. O "devido processo legal", que muitos ministros citaram como sendo necessário preservar, foi acrescentado em alguns votos como sendo, no caso em julgamento, o "devido processo legal-eleitoral", e o ministro Celso de Mello falou no "devido processo eleitoral".

A lei que originou toda essa polêmica é de 1997, e já estava em vigor nas eleições de 1998, mas só teve efeitos práticos na eleição de 2002 porque o deputado Miro Teixeira, então no PDT, queria fortalecer uma coligação nacional que seu partido faria com o PPS e fez uma consulta formal ao Tribunal Superior Eleitoral . Já naquela ocasião, o senador Renan Calheiros tentou aprovar uma emenda constitucional para evitar a verticalização, mas não teve sucesso.

Toda essa discussão de conteúdo ficou superada, no entanto, pela discussão sobre o prazo legal das mudanças, que expirou em 30 de setembro. Essa questão dos prazos teve até mesmo lances grotescos, como a constatação de que a emenda constitucional aprovada pelo Senado em 2006 tinha em seu texto uma referência à sua validade "a partir das eleições de 2002". Quis o Senado com isso dar a entender que esse processo se originava em 2002, podendo valer nas eleições deste ano, o que foi rejeitado pela relatora, ministra Ellen Gracie.

Foi recordado ontem, em diversos votos, que o Supremo Tribunal Federal já tinha uma decisão que considerou inconstitucional uma emenda constitucional de 1993, que autorizou a União a instituir o Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira, o IPMF, porque feria o artigo 150 da Constituição, que determina que um imposto não pode entrar em vigor no mesmo exercício em que é criado.

Segundo a decisão do Supremo, a emenda constitucional violou os seguintes princípios: o da anterioridade individual do contribuinte; segurança jurídica e os direitos individuais. Por isso o IPMF passou a ser CPMF, deixando de ser imposto e virando contribuição. O mesmo critério vale também para as leis eleitorais, segundo o entendimento de juristas. No caso do imposto, ele não pode vigorar no mesmo exercício. No caso da lei eleitoral, ela não pode ser alterada a menos de um ano da eleição.

A decisão do Congresso sobre a verticalização não foi desautorizada pelo Supremo, passando a valer a partir das eleições de 2010. Até lá, no entanto, é possível que uma ampla reforma político-eleitoral seja discutida e votada elo Congresso, e a discussão sobre a verticalização perderá toda a importância diante do conjunto novo de regras. Sua adoção ou não era crucial para esta eleição, onde aparentemente será mais decisiva do que foi em 2002.