Título: ATÉ À PRÓXIMA TRAGÉDIA
Autor: AZUETE FOGAÇA
Fonte: O Globo, 23/03/2006, Opiniao, p. 7

Na noite de domingo os lares brasileiros foram invadidos por imagens que mostraram o quanto uma sociedade pode ser cruel com suas próprias crianças. Para os olhos de quem quer ver, o documentário exibido pela Rede Globo traz a público, de uma forma bastante direta e crua, uma triste realidade, em face da qual a maior parte da sociedade brasileira reclama apenas soluções de força. É tragicômico perceber, através do filme, que os "falcões" têm mais consciência do apartheid social de que são vítimas do que muitos que se mostram indignados com o nível de violência com o qual convivemos.

Os "falcões" sabem que, do brinquedo às estratégias de sobrevivência, o mundo ao qual eles pertencem não tem nada a ver com o mundo das crianças bem-nascidas; a declaração de que "quando crescer quero ser bandido" mostra que, num contexto em que não lhes são oferecidas quaisquer oportunidades, a começar pelo acesso a uma educação de qualidade, essa é a única aspiração que eventualmente poderão concretizar. E essa consciência de que fazem parte de um exército de excluídos leva, de um lado, a uma apatia - "eu não penso nada porque eu sempre tô se drogando", aliada a um certo amadurecimento precoce, que faz com que alguém que mal começou a viver declare que já está cansado "de tanto esculacho na vida".

No início dos anos 80, na cidade de São Paulo, quando o fenômeno dos menores infratores se tornou visível o suficiente para incomodar as camadas mais favorecidas da população, uma autoridade pública, procurando acalmar os mais temerosos, declarou que aquela era uma questão que se resolvia com o tempo: os menores cresceriam e um dia se tornariam maiores de idade, e aí poderiam ser presos ou até mesmo mortos em confrontos com a polícia.

À primeira vista, parece que estava certo: desde então, muitos meninos de rua - infratores ou não - morreram em rebeliões nas instituições em que estavam confinados ou nas inúmeras chacinas registradas, sem falar daqueles que foram simplesmente consumidos pelo uso de drogas pesadas. Apesar disso, cada vez mais presente nas grandes cidades brasileiras, o problema não só se estende, como se aprofunda, porque, ao drama do abandono, ou da fuga da pobreza extrema e da violência doméstica, somam-se agora a exploração sexual e a cooptação pelo tráfico de drogas.

O agravamento das questões que envolvem as crianças e os adolescentes pobres mostra que as soluções até agora oferecidas são equivocadas. O recolhimento a instituições do gênero da Febem - uma saída imediatista defendida por muitos - aplaca algumas consciências, satisfaz alguns preconceitos e dá alguma impressão de segurança, mas equivale a tomar um remédio para baixar a febre sem procurar curar a infecção que a está provocando. Tampouco adianta penalizar famílias carentes de tudo e mães tão desamparadas quanto seus filhos, num contexto em que o Estado efetivamente lhes nega os direitos básicos da cidadania.

O enfoque imediatista da questão coloca em segundo plano o fato de que esse é apenas um, dentre os inúmeros sintomas da profunda desigualdade que marca a sociedade brasileira, e que se revela principalmente nos centros urbanos, onde a sobrevivência em padrões minimamente dignos se torna cada vez mais difícil. Apesar das políticas assistenciais - que podem até ser bem-intencionadas - e dos discursos que procuram destacar a melhoria das condições de vida dos brasileiros mais pobres, o que as pesquisas educacionais e sobre a criminalidade mostram - e que o noticiário policial confirma - é que boa parte da infância e da juventude brasileira está entregue à própria sorte e desde muito cedo predestinada à prostituição, à droga, ao crime e à morte violenta e prematura. Como já observou a pesquisadora Vanilda Paiva, quando da exibição do filme "Cidade de Deus", os problemas sociais que estão por trás dessas tristes histórias são os de sempre.

Acontece que as sucessivas administrações públicas governam de costas para essa realidade e sabem que o espanto e o horror da população são passageiros; assim, logo voltaremos à "normalidade", até que alguma nova tragédia aconteça, provocando nova onda de indignação, que provocará novos pronunciamentos contundentes de nossas autoridades, prometendo soluções que jamais lhes serão cobradas. Mas, antes que os "falcões" caiam no esquecimento, é bom lembrar o que disse um dos menores entrevistados: "Se eu morrer nasce outro, pior ou melhor do que eu..."

AZUETE FOGAÇA é professora da Universidade Federal de Juiz de Fora.

Lembre-se de um dos "falcões": "Se eu morrer nasce outro, pior ou melhor do que eu"