Título: ESTAMOS NO BRASIL
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 24/03/2006, O País, p. 4

"Como demorando? Você está no Brasil, pelo amor de Deus". Quando, poucos dias atrás, o delegado da Polícia Federal Wilson Damázio fez esse desabafo ao responder a um jornalista sobre a demora da investigação sobre a quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, não tinha idéia de que sua espontaneidade se tornaria um grave diagnóstico da triste situação em que o país se encontra. E porque estamos no Brasil, a Caixa Econômica Federal pediu nada menos que 15 dias de prazo para identificar quem entrou na conta do caseiro para pegar um extrato de sua poupança, um procedimento que os entendidos garantem não duraria nem 15 minutos.

E, porque estamos no Brasil, o pobre do caseiro passou a ser investigado pela Polícia Federal, a mesma sob cuja guarda estava quando entraram em sua conta ilegalmente. E também o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão subordinado ao Ministério da Fazenda, está investigando sua polpuda poupança, desconfiando que os depósitos de cerca de R$25 mil desde o início do ano podem representar uma lavagem de dinheiro.

A movimentação financeira da conta de Francenildo entre outubro de 2005 e março de 2006 chamou a atenção do Coaf, que quer entender a "atipicidade" dos depósitos. Estamos realmente no Brasil.

Durante meses e anos o lobista Marcos Valério distribuiu pelo menos R$55 milhões entre políticos e autoridades diversas, que sacaram milhares de reais na boca do caixa dos bancos Rural e BMG, e o Coaf nunca desconfiou de nada.

O marqueteiro Duda Mendonça recebeu pelo menos R$10 milhões em uma conta em paraíso fiscal do Caribe pelos trabalhos prestados ao partido do governo na campanha presidencial de 2002, e nunca ninguém desconfiou de nada.

O presidente do Sebrae, o sindicalista Paulo Okamotto, é suspeito de ter se utilizado do dinheiro desse valerioduto para pagar uma dívida pessoal do presidente Lula, e seu sigilo bancário não pode ser quebrado por decisão do Supremo Tribunal Federal.

Mas a Polícia Federal pediu a quebra do sigilo bancário e telefônico do caseiro, e duvido que alguém entre no Supremo para impedir que isso aconteça. E se entrar, suspeito que o Supremo autorize a quebra. Mesmo porque o próprio caseiro já havia colocado à disposição da CPI seus sigilos.

Quem tem alguma coisa a esconder, um caseiro que abre mão de seu sigilo e justifica o dinheiro em sua conta com uma história íntima que só o prejudica, ou um empresário que luta na Justiça para impedir que se quebre seu sigilo bancário?

Toda essa história seria risível se não revelasse uma tragédia brasileira, se não fosse reflexo da corrosão moral que tomou conta do país a partir do momento em que o próprio presidente da República, beneficiário do mensalão que inflou sua base partidária, resolveu que os "companheiros" não tinham que se envergonhar de nada, tinham que levantar a cabeça e seguir adiante.

Desde o "dinheiro não contabilizado" até o "vazamento" do extrato bancário do caseiro, tudo que o PT e seu governo vêm fazendo é justificado pelo fato de já ter sido feito anteriormente.

Assim como o presidente Lula saiu na frente para dizer que o uso de Caixa 2 é feito sistematicamente no país, o PT passou a relacionar em seu site os diversos vazamentos de documentos feitos pela oposição ao longo do escândalo do mensalão, como se fossem a mesma coisa, "deplorável", mas parte da cultura política brasileira.

Trata-se de mais uma farsa. Assim como nunca, nem mesmo no governo Collor, armou-se um esquema oficial a partir do Palácio do Planalto para a compra em bloco de um dos poderes da República, também nunca houve caso em que agentes do Estado tenham infringido tão acintosamente a lei, em defesa própria.

Fizeram a ignomínia de se aproveitar do humilde caseiro para confiscar ilegalmente seu cartão da Caixa Econômica na sede da Polícia Federal, e agora fazem um procedimento oficial com o mesmo objetivo de constrangê-lo.

Não é à toa que sua mulher, que também trabalhava na indigitada casa do Lago Sul, está com medo de dar um depoimento à CPI. Mas, como estamos no Brasil, o caseiro é suspeito por ter em sua poupança uma soma tão alta quanto R$25 mil, mas a maioria dos deputados mensaleiros está sendo absolvida no plenário da Câmara.

Com direito a cenas de despudor explícito como as protagonizadas pela deputada Ângela Guadagnin, que defende sem pestanejar todos os petistas que estão sendo acusados de usar dinheiro do valerioduto.

Ontem, quando já não havia mais votos para cassar o deputado João Magno, acusado de ter recebido de Marcos Valério nada menos que 15 vezes mais do que o caseiro tem na sua poupança, a deputada pôs-se a dançar grotescamente entre as cadeiras do plenário da Câmara, diante das câmeras de televisão.

Isso tudo encerrando uma semana em que a pomposa Comissão de Ética Pública da Presidência da República concluiu que o general Francisco Albuquerque, comandante do Exército, não merecia nenhuma punição pela carteirada que deu para embarcar no vôo da TAM para Brasília, que perdera por chegar atrasado ao aeroporto. A Comissão admite que o general recebeu "tratamento privilegiado", mas não por sua culpa. Só podemos mesmo estar no Brasil.