Título: ARGENTINA PÁRA EM REPÚDIO À DITADURA
Autor: Janaína Figueiredo
Fonte: O Globo, 24/03/2006, O Mundo, p. 30

Membros do governo e Mães da Praça de Maio participarão hoje de manifestação em feriado para relembrar anos de chumbo

BUENOS AIRES. Trinta anos depois do golpe de Estado que resultou numa das ditaduras mais brutais do continente, a Argentina fará hoje manifestações em repúdio aos militares que em 24 de março de 1976 assumiram o poder e executaram verdadeiros massacres. Na Escola de Mecânica da Marinha (Esma), principal centro clandestino de tortura da ditadura (1976-1983), e na Praça de Maio, autoridades do governo Kirchner e representantes de organizações como Mães e Avós da Praça de Maio participarão de atos em homenagem às vítimas e para pedir que nunca mais se repita experiência tão traumática.

De acordo com organismos de defesa dos direitos humanos, foram mortas cerca de 30 mil pessoas na ditadura.

Eventos nas 24 províncias e nas embaixadas no exterior

Também serão realizados eventos em quase todas as embaixadas da Argentina e nas 24 províncias do país. Trinta anos depois, a consciência dos argentinos sobre os crimes da ditadura é profunda. Segundo pesquisa da consultoria Ricardo Rouvier, 71% consideram que "a memória sobre o que aconteceu deve manter-se viva". Apenas 24% afirmaram que "o passado deve ser esquecido para que se possa olhar para o futuro". O resultado está em sintonia com a política do governo Kirchner, que defende amplo conhecimento do que se passou e, sobretudo, o julgamento de quem violou os direitos humanos.

- Queremos construir um país com memória, justiça e verdade, mas sem ódio e sem vingança - disse Kirchner, que hoje participará de um ato no Ministério da Defesa.

O presidente argentino pertence à geração que se sente mutilada pela ditadura. Ele assegurou que hoje "deve ser um dia de reflexão, de se pensar por que isso nos aconteceu". Semana passada, o Congresso deu sinal verde ao projeto de lei que declara feriado nacional o dia 24 de março, iniciativa defendida pelo governo. Outra medida inédita foi a decisão do Ministério da Defesa de autorizar o pleno acesso a todos os documentos das Forças Armadas sobre fatos ocorridos durante a ditadura.

A decisão foi anunciada em meio a um escândalo desencadeado pela denúncia de que militares da base de Almirante Zar, no sul do país, espionavam políticos, dirigentes de grupos sociais, sindicalistas e jornalistas. O caso levou o governo a fechar todas as centrais de inteligência da Marinha e iniciar uma auditoria interna para saber se existem outros grupos de espionagem.

Alfonsín: setores civis participaram da ditadura

O clima no país é de tranqüilidade, apesar de alguns incidentes isolados e do temor de que as marchas de hoje terminem em violência. Ontem, explodiram duas bombas artesanais em frente a concessionárias da Ford e da Mercedes Benz. De acordo com investigações, essas empresas colaboraram com o governo militar na perseguição de opositores. "Que o poder econômico da ditadura leve o troco. Empresas como Ford e Mercedes-Bens foram sócias da ditadura, cúmplices do desaparecimento de trabalhadores e 30 anos depois continuam impunes. Julgamento e castigo aos empresários da ditadura", diziam panfletos.

O ex-presidente Raúl Alfonsín (1983-1989), que assumiu após sete anos de regime militar, advertiu ontem:

- Não podemos esquecer a ação dos militares no golpe, mas eles sempre estiveram acompanhados de setores civis que utilizaram o governo militar para seu próprio benefício.

Sete anos de covardia e repressão

BUENOS AIRES. Na noite de 23 de março de 1976, a atmosfera na Casa Rosada era de preocupação. A presidente Isabelita Perón, viúva e sucessora de Juan Domingo Perón, estava reunida com ministros, que esperavam um golpe militar a qualquer momento. Numa conversa cercada de tensão, Isabelita perguntou ao ministro da Defesa, José Alberto Deheza, quem seria o líder militar mais acessível para tentar dialogar. A resposta: "Videla."

No dia seguinte, os chefes do Exército, Jorge Videla, da Marinha, Emilio Massera, e da Força Aérea, Orlando Agosti, foram ao palácio do governo, mas para inaugurar o que chamaram de "processo de reorganização nacional." Videla seria o primeiro presidente de uma das mais violentas ditaduras que a América já vira. Nos sete anos seguintes, a brutalidade da ditadura não encontrou rival nem mesmo no vizinho Chile de Augusto Pinochet. O terrorismo de Estado permeou toda a sociedade argentina. Dezenas de milhares de pessoas foram presas, espancadas ou tiveram que fugir do país.

O termo "desaparecido" se tornou tristemente conhecido em todo o mundo. Oficialmente, 18 mil pessoas desapareceram nas mãos do Estado, grande parte delas depois de terem passado pela Esma, maior centro de tortura da ditadura. Grupos de direitos humanos colocam este número, no entanto, em 30 mil. Depois de assassinar oponentes políticos, os militares escondiam os corpos.

Numa prática ainda mais macabra, centenas de opositores foram colocados em aviões e atirados no mar, drogados mas ainda vivos, para morreram afogados. Os parentes jamais viram os corpos. Uma descrição disto foi dada pelo próprio Videla, que comandou o governo até 1981:

- O desaparecido não existe. Não está vivo nem morto, é um desaparecido.

Videla foi substituído por Roberto Viola e, este, por Leopoldo Galtieri. Nos anos 80, grupos como as Mães da Praça de Maio enfrentavam o governo, que perdia popularidade. Galtieri, numa manobra populista, invadiu as Ilhas Malvinas, colocando o país em guerra com o Reino Unido.

A derrota na conflito ajudou a enterrar o regime. A ditadura terminaria em 1983, com a eleição de Raúl Alfonsín.

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