Título: Sombra do ministro
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 25/03/2006, Economia, p. 38

Uma sombra circulou em Brasília esta semana. A sombra do ministro da Fazenda. Ele saía de casa encolhido, recolhia-se ao Palácio do Planalto. Ontem, reapareceu em São Paulo e fez um discurso ambíguo: parecia ser um balanço de quem vai sair e quer deixar claro que as idéias que defendeu permanecerão. Não é mais uma questão de saber se sairá do governo, mas, sim, quando sairá. Ele prestou grandes serviços ao país, rejeitou pressões e, várias vezes, evitou desastres. Ao contrário do que o mercado acha, não é fácil substituí-lo. Palocci várias vezes lutou solitariamente.

Toda vez em que fala, principalmente quando faz improviso, o ministro Palocci reduz a tensão. Foi o que conseguiu ontem. Mas não resolveu a crise. Ele atribuiu os fatos dos últimos dias à exacerbação da disputa política. A dúvida destes últimos dias não é eleitoral, é sobre o uso da máquina pública para constranger uma testemunha que o contradiz.

O Coaf garante que não foi, nem admitiria, ser usaødo politicamente. Ligou-me o presidente do órgão, Antonio Gustavo Rodrigues. Disse que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras recebe de todos os bancos informações sobre qualquer movimentação em espécie acima de R$100 mil. Recebe informação também sobre qualquer operação, de qualquer valor, que seja considerada suspeita pelo banco.

¿ Somos um grande banco de dados. Não investigamos, nem mandamos investigar. Nós recebemos comunicação de operações suspeitas. Cruzamos os dados e enviamos para as autoridades. No caso da SMP&B, já havíamos comunicado ao Ministério Público desde outubro de 2003 que a empresa fazia grandes saques em espécie. Agora, o que houve é que, no dia 17, sexta-feira, às 19 horas recebemos uma informação de uma instituição financeira de que havia uma movimentação atípica nesta conta (a de Francenildo). Fizemos um relatório de menos de meia página e remetemos na segunda-feira para a Polícia Federal e para o Ministério Público informando isso. É praxe. É assim que agimos. Jamais recebi qualquer pedido do ministro da Fazenda para fazer isso. Aliás, eu sou funcionário de carreira do BNDES, sempre fiz uma carreira unicamente técnica, não recebi qualquer pressão política, nem o órgão que eu presido ¿ disse.

A propósito: o Coaf recebe 900 comunicações por dia. Se as dúvidas sobre o órgão forem sanadas, ficará ainda a dúvida sobre o que levou a Caixa Econômica a quebrar o sigilo e a comunicar que havia uma suspeita em relação a Francenildo. O ministro, ao falar ontem na Câmara Americana de Comércio, atribuiu todo o seu ¿inferno¿ à briga política de uma campanha que será agressiva, mas não aproveitou para esclarecer o que houve, afinal, na Caixa Econômica Federal, uma instituição centenária, que não tem razão alguma para ser transformada em um braço do governo.

Palocci ontem quis passar a idéia de que nada vai mudar na política econômica. Soou como despedida, ainda que, no Ministério da Fazenda, garanta-se que não foi isso que ele quis passar. De qualquer maneira, Palocci sabe que não pode dar garantias de que nada mudará quando o ministério estiver sob o comando de outra pessoa.

Ele esteve sozinho em inúmeras brigas para evitar a adoção de idéias que significariam mais gastos ou deterioração de alguns instrumentos de política econômica. Na montagem do governo, o PT e a entourage do presidente Lula quiseram impor ao ministro Palocci o nome de militantes sem a competência técnica necessária para a Secretaria do Tesouro, a Secretaria da Receita Federal e os outros quadros estratégicos da Fazenda. Ele recusou os nomes propostos e virou um dos poucos do governo que foi além do limitado horizonte dos ideólogos do partido. Montou uma equipe técnica e virou um líder da sua equipe formada, em grande parte, por pessoas que acabara de conhecer.

Ele foi o bom senso do começo do governo. Sobre o Ministério da Fazenda, em qualquer governo, recaem as pressões de todos os grupos de interesses e deságuam todas as idéias que significam mais gastos. Se o ministro ceder a cada uma das pressões e idéias, ele contratará uma explosão fiscal adiante. O governo Lula assumiu com vontade de dar grandes aumentos ao funcionalismo, elevar os gastos em todas as áreas, e ceder a inúmeros lobbies. Foi na briga diária, no varejo, que essas pressões foram contidas. Desembarcavam propostas de desonerar setores empresariais com mais poder de influência. Era Palocci quem segurava.

Mas o ministro errou gravemente no relacionamento com seu passado; seja nas viagens de jatinho do empresário Roberto Colnaghi, seja nos contatos que teve com ex-assessores que montaram uma central de lobby em Brasília. Não há sinal, até o momento, de que o ministro da Fazenda tenha atendido ao lobby. Pelo contrário. No caso das pressões para beneficiar grupos com os ativos do Proer, o Banco Central teve o total aval do ministro da Fazenda para agir por critérios técnicos.

Mas este ato final é deplorável. Não interessa a esta altura saber da origem do dinheiro na conta do caseiro, nem com quem ele falava ao telefone. Qualquer erro que porventura tenha cometido não apaga o desatino de um governo que quebra os princípios dos direitos individuais. O fato é que o governo usou seu poder e um banco estatal para acuar uma testemunha. O que aconteceu é inadmissível e põe em risco não a vida de um cidadão isoladamente, mas o futuro das instituições.