Título: `ESTOU TENTANDO CONSTRUIR UMA IMAGEM DE MEUS PAIS¿
Autor: Janaina Figueiredo
Fonte: O Globo, 25/03/2006, O Mundo, p. 43

Filha de desaparecidos, Claudia foi criada por um militar e somente há 6 anos descobriu sua verdadeira identidade

BUENOS AIRES. Em 28 de novembro de 1978, Gertrudis Hlaczik e José Poblete Roa foram seqüestrados e levados para o centro clandestino de torturas El Olimpo, em Buenos Aires. Os militares também seqüestraram a filha do casal, Claudia, que tinha apenas 8 meses. José ¿ Pepe para amigos e familiares ¿ era chileno e havia perdido as pernas aos 17 anos. Na época em que foram seqüestrados, Pepe tinha 23 anos e Trudi, apelido de Gertrudis, apenas 20. O casal nunca mais apareceu e o bebê foi entregue ao militar Ceferino Landa e sua mulher, Mercedes Beatriz Landa. Hoje, ambos cumprem regime de prisão domiciliar e Claudia, que descobriu sua verdadeira identidade em fevereiro de 2000, tenta reconstruir uma vida que a ditadura tentou destruir. ¿Juntei todos os pedacinhos de memória e estou construindo uma imagem de meus pais que muitas vezes acho que não é real, mas é a que tenho. É como armar um quebra-cabeças¿, disse Claudia, em entrevista ao GLOBO. O caso está em mãos da Justiça e, como tantos outros, à espera do julgamento.

Hoje (ontem) é o primeiro feriado nacional em recordação do golpe de Estado de 24 de março de 1976. Você está de acordo com a decisão do Congresso?

CLAUDIA POBLETE: Para mim é positivo que o dia esteja marcado em todos os almanaques da Argentina, porque esse dia mudou a vida de todos. Aos que usaram o dia para passear, não tenho nada a dizer. No dia 24 de março começou o pesadelo, embora minha vida tenha mudado no dia 28 de novembro de 1978, quando meus pais foram seqüestrados.

Como é seu relacionamento com sua família biológica?

CLAUDIA: Com minha família biológica estou construindo um relacionamento, com alguns é mais fácil do que com outros. Do lado paterno, são quase 40 pessoas. Tenho seis tios, são todos chilenos e estão todos aqui na Argentina.

Você foi registrada com o nome de Mercedes Beatriz Landa. Foi difícil assumir uma nova identidade e um novo nome?

CLAUDIA: A mudança de nome não me custou tanto, porque quando percebi que o nome Mercedes era falso imediatamente decidi eliminá-lo de minha vida. Sinto uma coisa estranha quando alguém me chama Mercedes. Era um nome falso, como todo o resto.

Como é hoje seu relacionamento com o casal que a criou?

CLAUDIA: Tenho um relacionamento com eles.

Você os perdoou?

CLAUDIA: Perdoar não sei, isso está além de mim. Mas escolhi manter o relacionamento, não eliminar 20 anos da minha vida. Não fui maltratada, como outras crianças roubadas. Todas as recordações de minha infância estão relacionadas a eles.

Eles estão arrependidos?

CLAUDIA: Se estão arrependidos não sei, isso é muito pessoal.

Você visitou a casa onde morava com seus pais e o lugar onde eles estiveram presos e foram torturados?

CLAUDIA: Nunca tive coragem de entrar no Olimpo, é pesado demais. Algum dia entrarei, mas ainda não tive coragem. Li muito sobre a história de meus pais, as situações que eles viveram. Quando leio sobre eles fico tonta, é pesado demais.

Você está reconstruindo sua história...

CLAUDIA: Meus familiares, amigos, me mostraram fotos e me contaram coisas sobre meus pais. Juntei todos os pedacinhos de memória e estou construindo uma imagem de meus pais que muitas vezes acho que não é real, mas é a que tenho. É como armar um quebra-cabeças. Meu pai era uma pessoa muito comprometida com a luta social (Pepe fundou a Frente de Deficientes Físicos pela Libertação), é incrível pensar que era tão jovem quando morreu. Minha família diz que sou analítica e negociadora como meu pai. Fisicamente acho que sou uma mistura, tenho o cabelo e as mãos de minha mãe e o perfil de meu pai. Antes eu tinha muita dificuldade em falar sobre o assunto, hoje é um pouco mais fácil. Mas cada vez que leio uma informação, tenho uma reação física, estamos sempre revivendo nossa história.

Você conheceu pessoas que estiveram seqüestradas no mesmo lugar que seus pais?

CLAUDIA: Sim, conheci algumas pessoas que me contaram coisas terríveis (segundo depoimentos de sobreviventes, os militares foram especialmente cruéis com José, apesar de sua deficiência física).

Como é sua vida hoje?

CLAUDIA: Estou casada, mas ainda não tenho filhos. Sou analista de sistemas e estou estudando para ser professora, uma vocação que descobri recentemente.

Você gostaria de ter filhos?

CLAUDIA: Sim, claro. E meus filhos poderão saber quem foram seus avós, que sonhos tinham e qual foi sua história. (Janaína Figueiredo)