Título: VIOLÊNCIA NOS 30 ANOS DO GOLPE
Autor: Janaina Figueiredo
Fonte: O Globo, 25/03/2006, O Mundo, p. 43

Kirchner defende anulação de indulto a militares e manifestantes atacam prédio de ex-ministro

No dia em que os argentinos recordaram e repudiaram o golpe de Estado de 24 de março de 1976, o presidente do país, Néstor Kirchner, defendeu a anulação do indulto aos militares aprovado, por decreto, durante o governo Carlos Menem (1989-1999) e acusou setores da sociedade civil de terem sido cúmplices da ¿mais cruel experiência antidemocrática da História argentina¿. Exatamente 30 anos depois do golpe que derrubou o governo de María Estela Martínez de Perón, sucessora do terceiro governo do general Juan Domingo Perón (1973-1974), o presidente argentino assegurou que ¿somente castigando os culpados serão libertados os inocentes¿.

Num ato no Colégio Militar de El Palomar, na província de Buenos Aires, Kirchner pronunciou um dos discursos mais duros contra o governo militar (1976-1983) e seus aliados desde que chegou ao poder, em maio de 2003.

¿ Aquele golpe não pode ser reduzido apenas a um fenômeno protagonizado pelas Forças Armadas. Setores da sociedade como a imprensa, a Igreja e a classe política cumpriram seu papel cada vez que era subvertida a ordem ¿ declarou Kirchner, que, na véspera, exigira aos meios de comunicação uma autocrítica pelo papel desempenhado durante o governo militar.

Passeata de cem mil até a Praça de Maio

Na platéia, além de centenas de jovens oficiais, todos os ministros do Gabinete, a primeira-dama e senadora Cristina Fernández e os principais comandantes militares. Em meio a um debate sobre que instituição do Estado deveria anular o indulto de Menem (que anistiou os chefes da ditadura argentina e, também, importantes líderes guerrilheiros), o presidente argentino, que voltou a defender a anulação das leis de Obediência Devida e Ponto Final, deixou claro que a decisão cabe à Justiça.

¿ Não pode haver reconciliação se resta algum rescaldo de impunidade. A Justiça deve declarar, com clareza, a constitucionalidade ou não do indulto ¿ enfatizou Kirchner, que durante o ato inaugurou uma placa com a seguinte legenda: ¿Nunca mais ao golpe e ao terrorismo de Estado.¿

O presidente questionou, ainda, a política econômica do governo militar e denunciou o então ministro da Economia, José Alfredo Martínez de Hoz, de ser o responsável pelo processo de empobrecimento em que mergulhou o país após o golpe.

Pouco menos de uma hora depois, dezenas de manifestantes atacaram com pedras e queimaram a entrada do prédio onde vive atualmente o ex-ministro da ditadura, no centro da capital argentina. O violento protesto foi reprimido por policiais e terminou sem feridos, mas criou um clima de tensão no dia em que o governo pediu aos argentinos que refletissem sobre um dos momentos mais trágicos da História do país.

No fim da tarde, 370 organizações sociais participaram de uma gigantesca marcha, cujo lema foi ¿Trinta anos: memória, justiça e verdade¿. Cerca de cem mil pessoas caminharam do Congresso até a Praça de Maio, onde na madrugada de ontem terminou uma vigília organizada pelas Mães da Praça de Maio. A manifestação terminou em divergência, já que as Avós da Praça de Maio decidiram não assinar um documento elaborado por outras organizações sociais. A presidente do grupo, Estela de Carlotto, disse que elas foram enganadas e criticou ¿o uso da dor das pessoas¿. Segundo explicou Carlotto, o grupo havia pedido que fossem retirados trechos do documento e o pedido não foi cumprido. As Avós consideraram o documento violento e questionaram as referências feitas ao governo. Carlotto disse que desligaram os microfones quando ela tentava manifestar sua opinião.

Também foi realizada uma visita para 61 representantes diplomáticos à Escola de Mecânica da Marinha (Esma), principal centro de tortura da ditadura, e a inauguração de uma mostra de fotos e vídeos, realizada pela Secretaria de Cultura.

As principais figuras do governo militar optaram, como fazem há anos, pelo silêncio. O ex-presidente Jorge Rafael Videla foi procurado por uma rádio em seu apartamento, onde cumpre prisão domiciliar. Através do interfone, o ex-presidente, que comandou o golpe de 1976, disse que não faria qualquer declaração.

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