Título: UMA FILA QUE NÃO ANDA E AINDA PODE LEVAR À MORTE
Autor: Daniel Engelbrecht
Fonte: O Globo, 26/03/2006, Rio, p. 20

Pacientes à espera de um transplante aumentam 78% em um ano, enquanto procedimentos e doadores só diminuem

As lágrimas no rosto de Kátia Beatriz Moura Cruz, de 58 anos, revelam que a espera, às vezes, pode ser dolorosa. Doente renal crônica, ela era uma das 7.482 pessoas na fila por um órgão em dezembro no Estado do Rio ¿ um número que aumenta a cada ano. O ingresso cada vez maior de pacientes na lista, contudo, não é o único responsável por isso. De acordo com um estudo realizado este ano pelo vereador Carlos Eduardo, presidente da Comissão de Saúde da Câmara de Vereadores do Rio, e um relatório de 2004 do Tribunal de Contas da União (TCU), falhas nos sistemas de notificação, captação e transplante de órgãos e tecidos contribuem para agravar a situação. O problema mais grave está nos transplantes de córnea. O único banco de olhos do estado foi interditado na terça-feira pela Vigilância Sanitária.

O número total de transplantes de fígado, rins e córneas, os principais realizados no Rio, diminuiu 16% em 2005 em relação ao ano anterior, segundo dados do Rio Transplante. A quantidade de doadores também baixou no período, de 288 pessoas para 274. Enquanto isso, a fila de espera por esses órgãos e tecidos saltou de 5.852 pacientes no início de 2005 para 7.455 no final do ano, um aumento de 78%, de acordo com dados obtidos por Carlos Eduardo. Somados os inscritos nas filas para coração, pâncreas e pulmões, 7.482 pessoas aguardavam transplante no fim de 2005.

Taxa de perda de órgãos captados continua alta

Na fila por um rim há quase dois anos, Kátia sobrevive fazendo hemodiálise três vezes por semana e tomando dez tipos diferentes de medicamentos diariamente. Na última consulta que fez ao cadastro, no dia 13, ela ainda estava na posição 1.122.

¿ O caminho para quem espera um órgão é duro. Você se sente dependente e não pode fazer nada. E a demora só deixa a gente mais abalada emocionalmente ¿ diz.

A lentidão deixa igualmente desolado o comerciante José Alves Nazaré, de 51 anos, que também sofre de problema renal. Ele ingressou na fila pelo órgão em fevereiro de 2002 na posição 801. Na última consulta, em julho do ano passado, era o 353º.

¿ Muitas pessoas morrem por causa dessa demora. Hoje, sou dependente de uma máquina de hemodiálise. Se conseguisse fazer o enxerto, teria uma vida normal ¿ lamenta.

Um dos motivos para o número insuficiente de transplantes de rim é a elevada taxa de perda de órgãos captados. Em 2004, o índice foi de 47%, segundo auditoria do TCU. Dos estados que realizaram esse tipo de transplante, apenas Goiás e o Distrito Federal tiveram desempenho pior.

A situação é ainda mais dramática nos transplantes de córnea, justamente um dos tecidos cujo procedimento para captação e transplante é mais fácil. Entre o fim de 2003 e o fim de 2004, a lista de espera saltou de 1.257 pessoas para 1.774, segundo o TCU, ao passo que foram feitos apenas 170 implantes (162, segundo o Rio Transplante). Em São Paulo, foram 3.333 e em Goiás, 1.121. A fila poderia ter se mantido praticamente estável se 68% das 529 córneas captadas naquele ano não tivessem deixado de ser aproveitadas por razões diversas ¿ o pior índice dos 20 estados que fizeram transplantes.

Para piorar o quadro, o único banco de olhos do estado, mantido por um grupo de oftalmologistas em espaço cedido pelo Hospital Geral de Bonsucesso (HGB), foi interditado na última terça-feira pela Vigilância Sanitária estadual. Desde então os transplantes não emergenciais estão suspensos.

Para Carlos Eduardo, os problemas começam já no sistema de notificação das mortes encefálicas, requisito para que um órgão possa ser captado. Todo hospital de emergência ou com UTI deve, por exigência do Ministério da Saúde, contar com uma comissão intra-hospitalar responsável por identificar os possíveis doadores e contactar a família, entre outras funções. De acordo com o vereador, contudo, as comissões funcionam precariamente, tanto em hospitais municipais, quando em estaduais e federais.

¿ Na maioria das vezes os médicos acumulam essa função com suas atividades normais. Com o excesso de trabalho, é evidente que não têm como cumprir adequadamente seu papel na comissão ¿ diz o vereador.

O relatório do TCU cita como exemplo o Hospital Geral de Bonsucesso. Na unidade, não havia na ocasião da auditoria médico neurologista clínico e equipamentos para a realização de método gráfico para diagnóstico de morte encefálica.

A falta de estrutura nos hospitais obrigou a Secretaria estadual de Saúde a contratar uma clínica neurológica particular para realizar os exames de confirmação de morte encefálica. Por economia, apenas nos casos em que a família concorda com a doação é que os exames são realizados, contrariando o Decreto 2.268/1997, que regulamenta a Lei dos Transplantes, pelo qual os exames devem ser feitos em todos os casos de morte encefálica.

¿ A verdade é que as unidades do município não têm comprovado os casos de morte encefálica, de modo que a Secretaria estadual de Saúde está pagando a uma firma para fazer os exames. Gostaríamos de fazê-los em todos os casos, mas não há recursos para realizar seis mil deles por ano, como seria necessário ¿ justifica o coordenador do Rio Transplante, Joaquim Ribeiro Filho.

A carência estrutural acaba se refletindo no pequeno número de notificações e nos índices baixos de captações. Em janeiro de 2006, por exemplo, houve 60 notificações e apenas 11 captações de órgãos e tecidos, segundo o vereador.

Para o presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremerj), Paulo Cesar Geraldes, os principais problemas são a falta de doadores e a comunicação deficiente entre as equipes nos hospitais e o Rio Transplante:

¿ A situação é gravíssima. O Rio Transplante faz um trabalho bom de captação, mas há poucos doadores e a comunicação com as comissões intra-hospitalares é ruim. Logo, perde-se órgãos que poderiam ser captados. É preciso campanhas em massa para introduzir os transplantes no cotidiano das pessoas e uma organização que aumente a conexão das comissões intra-hospitalares com o Rio Transplante.