Título: JOVENS CONDENADOS PELO TRÁFICO BUSCAM REFÚGIO
Autor: Bernardo Mello Franco
Fonte: O Globo, 26/03/2006, Rio, p. 31

Programa com regras rígidas já protegeu, em um ano, 117 crianças e adolescentes expulsos de favelas

O adolescente X. tem 15 anos, interrompeu os estudos na 4ª série do Ensino Fundamental e está proibido de passar perto da favela em que cresceu, na Zona Norte da cidade. ¿Fogueteiro¿ e ¿vapor¿ da ¿boca-de-fumo¿ do morro, ele foi condenado por traficantes da mesma quadrilha por perder um carregamento de cocaína avaliado em R$1.500. Depois de passar por cinco abrigos públicos, onde tornou-se dependente químico, ele entrou no grupo de 117 jovens que buscaram refúgio no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), que completa um ano no estado.

Segundo os coordenadores do projeto, cerca de 90% dos inscritos estão na mira de traficantes. Reféns do próprio envolvimento com o crime, eles fugiram da sentença de morte e tentam começar uma nova vida longe da comunidade. Os menores são inscritos por conselhos tutelares, varas de Infância e Juventude e pelo Ministério Público. Depois que o perigo é comprovado, uma equipe de psicólogos e assistentes sociais entra em ação para escondê-los na casa de parentes ou em abrigos longe da zona de risco. Para receber a proteção, os jovens precisam cumprir normas rígidas de segurança, suspender o uso de drogas e garantir que querem sair do tráfico.

¿ A regra número um é não voltar à favela em que a ameaça foi feita. Os jovens têm que comunicar seus passos e só falam com a família com a participação de um supervisor do programa ¿ explica um assistente social que pediu para não ser identificado.

Guerra entre facções expulsa famílias inteiras

Atualmente, 18 adolescentes estão sob a proteção do programa. Eles são perseguidos por dívidas com traficantes, roubos de carga, assalto a moradores e outros crimes que contrariem a lei do tráfico na comunidade. Segundo o juiz Guaraci Vianna, da 2ªVara de Infância e Juventude, a troca de facções nas favelas tem aumentado o número de jovens ameaçados no estado.

¿ Depois de tomar as ¿bocas-de-fumo¿, os traficantes recém-chegados caçam os envolvidos com o grupo rival. Nas situações mais graves, temos que afastar a família inteira da comunidade ¿ conta.

Levantamento inédito com base em entrevistas com 78 jovens protegidos no ano passado mostra que as ameaças a menores já ultrapassaram os limites do Grande Rio. Municípios pequenos como Itaperuna e Italva, no Norte Fluminense, já cadastraram adolescentes em risco no programa. Para o presidente da Associação dos Conselhos Tutelares do Estado, Renê Dutra, os dados mostram que o tráfico está levando a violência para o interior do estado:

¿ Apesar do faturamento menor com a venda de drogas, as quadrilhas estão ampliando as áreas de atuação e já dominam a periferia dessas cidades. Há menos armas, mas a oferta de abrigos públicos também é pequena ¿ diz.

Em comum, os jovens ameaçados apresentam um histórico de pobreza, vínculo familiar frágil e falta de escolaridade. Em 71% dos casos, têm nas mães, que se desdobram para trabalhar fora e cuidar dos outros filhos, as únicas referências em casa. Segundo Dutra, que coordena os 109 conselhos tutelares espalhados pelo estado, elas são as principais responsáveis pela entrada de crianças e adolescentes no programa de proteção:

¿ As mães chegam desesperadas, sem saber como salvar os filhos jurados pelos bandidos. Depois de entrar no crime, os jovens ficam mais agressivos, perdem o respeito e muitas vezes fogem de casa. Só voltam a procurar ajuda da família quando estão em perigo.

Mãe usou produto químico para esconder tatuagem

No desespero para apagar as marcas do envolvimento do filho com o tráfico, a mãe de um dos jovens protegidos pelo programa usou um produto químico para queimar a tatuagem com as iniciais da facção criminosa. A reação manchou o braço do rapaz, mas ele fez novo sinal no mesmo lugar.

¿ Alguns adolescentes resistem muito a romper o vínculo com a vida no tráfico. Chegamos a marcar uma cirurgia para apagar a tatuagem de um deles, mas ele desistiu e abandonou o programa ¿ lembra uma coordenadora.

A falta de recursos para financiar a fuga da comunidade é um dos maiores fatores de entrada no programa de proteção. Mais da metade dos inscritos (56%) tem renda familiar igual ou inferior a um salário-mínimo. Apenas 32% estão participam de algum programa de distribuição de renda, como o Bolsa-Família.

A entrada no tráfico também costuma acompanhar a saída da escola. Apenas 26% das crianças e adolescentes abrigados estavam matriculados quando buscaram refúgio no PPCAAM. A estatística combina com a história de X., que abandonou os estudos durante a passagem pelo tráfico.

¿ Eu dava plantão na ¿boca¿ das 18h às 6h do dia seguinte e ia direto para a escola, mas não conseguia manter os olhos abertos. Um dia acordei com a professora me chamando depois da aula. Ela reclamou e resolvi não aparecer mais ¿ conta o adolescente, que voltou a estudar no abrigo e sonha trabalhar como mecânico após deixar o programa.

ONG cobra lei federal para proteger menores em risco

Diretor da ONG Projeto Legal, que coordena o PPCAAM no Rio com apoio de R$700 mil anuais da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o advogado Carlos Nicodemos diz que a expansão do programa para outros estados, além de São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo, depende da aprovação de um projeto de lei federal que garanta a criação de uma rede nacional de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte.

¿ Muitos jovens passam pelo mesmo problema no Sul e no Nordeste ¿ lembra.