Título: Entre riscos
Autor: Míriam Leitao
Fonte: O Globo, 26/03/2006, Economia, p. 34

As crises não têm resultados necessariamente negativos. Às vezes, por causa delas, os países avançam. Quando estourou a crise do mensalão, parecia ser o momento que levaria o Brasil a alguns avanços institucionais, já iniciados após o impeachment de Collor. Nove meses depois da avalanche de denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson, o comportamento errático dos políticos está confirmando o cenário pessimista. O risco fiscal começa a aumentar perigosamente.

A absolvição de deputados que se financiaram com dinheiro ilícito e que mentiram à Justiça Eleitoral informa ao país ¿ e aos políticos ¿ que, daqui para diante, está legalizado o vale-tudo. Países como Itália, Alemanha, Canadá aproveitaram momentos de escândalo político para construir avanços institucionais. No Brasil, após o escândalo de PC Farias, o então presidente Collor perdeu o cargo e os direitos políticos. Na seqüência, foi aprovada a primeira lei contra a lavagem de dinheiro e, anos mais tarde, criado o Coaf para ser uma ferramenta neutra, a serviço do Estado, para ajudar as autoridades. Desta vez, o governo e seus políticos caminharam para o extremo oposto e afrouxaram ainda mais seus princípios e valores. O escândalo do mensalão está chegando ao fim sem que o presidente Lula tenha dado o menor sinal de que notou a gravidade dos fatos. O Congresso reage de forma leviana, salvando seus pares e aumentando os salários de seus funcionários. A grotesca dança da deputada Ângela Guadagnin foi apenas a cereja do bolo do despudor; ou o orégano da pizza.

O risco fiscal aumentará com a saída do ministro Antonio Palocci. A queda dele passou a constar nos cenários do mercado como um simples ato de troca de nomes. Hoje ele já não tem mais poder para barrar a pressão dos gastos que se forma sempre contra governos fracos ou em momentos eleitorais.

O Orçamento não foi aprovado ainda, mas há um volume impressionante de pressões de gastos embutido nele. Sempre acontece isso e cabe ao ministro da Fazenda aparar os excessos, brecar os lobbies e evitar o pior. Hoje, que força teria Palocci para segurar esses gastos?

A deterioração fiscal já ficou visível nos dados de janeiro e fevereiro. A única forma de cumprir a meta fiscal é conter gastos no começo do ano, mas o governo iniciou a gastança logo cedo, com medo de enfrentar barreiras ao gasto no período eleitoral.

Esta semana haverá um teste importante: a MP do Bem agrícola. Será abatimento de imposto e alongamento de dívida. Há setores que vão mal por causa do câmbio; há setores que vão mal por razões objetivas, como o frango; há setores que vão muito bem, obrigado, porque o ganho do aumento dos preços mais do que compensa o câmbio. Mas, quando o governo acena com um pacote agrícola, todos reapresentam seu pedido de dinheiro. O Ministério da Agricultura não gosta de separar o joio do trigo porque sempre foi a voz dos produtores.

No ano passado, os produtores agrícolas fizeram um tratoraço em Brasília. Pediram subsídios e perdão de dívidas. Foi o Ministério da Fazenda que cortou a maior parte da transferência de dinheiro do governo para os proprietários rurais. Recentemente, o setor agrícola do Nordeste pediu perdão para suas dívidas. No bolo, estavam, de novo, os que estão realmente em dificuldade e os que nunca gostaram de pagar suas dívidas. Foi da Fazenda que saiu a ordem para que o perdão da dívida se concentrasse nos setores realmente com problemas. Hoje o ministro Antonio Palocci está enfraquecido e com menos poder de persuadir o presidente da República.

No governo passado, os empreiteiros que realizam obras em outros países pressionaram o governo para que o Tesouro fosse o avalista das suas operações em países de risco e para que o Banco Central garantisse o risco cambial. Na época, muita gente dentro do governo defendia esses instrumentos como indutores do desenvolvimento. O Tesouro se negou a fazer isso e o Banco Central lutou uma guerra interna para revogar o chamado CCR, mecanismo através do qual o BC daria aval cambial a exportadores de serviço.

O governo Lula criou o Fundo Garantidor de Exportações e reativou o CCR. Na Fazenda, garante-se que os instrumentos foram cercados de todas as garantias para que não se repita o que já houve no passado, quando os prejuízos eram sempre pagos pelo Tesouro. Para evitar isso, o Tesouro fez várias exigências, entre elas, a garantia de outras instituições de crédito, como a Companhia Andina de Fomento e o BID.

A pressão dentro do governo é para que o Tesouro dê aval a toda grande empresa e empreiteira. O Ministério das Relações Exteriores acha que isso é para garantir a presença do Brasil em países estratégicos. Estrada no Peru, hidrelétricas na República Dominicana, metrô em Caracas, exportações da Embraer, tudo é estratégico tanto para o Itamaraty quanto para o Gabinete Civil. No governo passado, a equipe econômica não permitiu que o Tesouro fizesse este tipo de operação; o atual governo decidiu dar aval em alguns casos desde que adotados mecanismos de mitigação do risco. A briga passou a ser na construção de cada operação. O trabalho do ministro Palocci tem sido jogar na retranca no caso a caso. Sem ele lá, a defesa fica aberta e os lobbies vão ganhar de goleada.

O país vive, na área política, o risco de afrouxamento das barreiras institucionais ao mau comportamento dos políticos, com a maioria dos deputados cassáveis sendo absolvida. Na economia, vive o risco de erosão fiscal. O mercado não vê a ameaça porque continua embalado pelo fluxo abundante. Mas a ficha pode cair de repente.

Qualquer turbulência de mercado será contornável, pior será lidar com o efeito de um retrocesso fiscal. Mas perigoso mesmo é a erosão avassaladora da confiança do país em seus representantes políticos.