Título: Um país que se recusa a mudar
Autor: Renato Galeno
Fonte: O Globo, 26/03/2006, O Mundo, p. 41

PARIS. Jean-Marie Gossin, 23 anos, estudante da Reims Management School ¿ que forma homens de negócio na França ¿ descreveu assim uma de suas primeiras experiências como estagiário de uma empresa:

¿ As pessoas começam a semana assim: hum, hoje é segunda-feira. Na terça, dizem, ah, tem uma semana pela frente. Na quarta: mas como é duro. Na quinta: daqui a pouco, virá o fim de semana. E na sexta: enfim, o fim de semana! É esta a mentalidade do trabalhador francês. Ele tem uma das melhores situações da Europa, mas se queixa de tudo.

Gossin só tem uma certeza quando se tornar um homem de negócios:

¿ Vou abrir meu negócio em qualquer lugar, menos na França.

Protestos de jovens e sindicalistas contra um contrato de primeiro emprego para jovens (CPE) são o sinal de um país que não quer mudar. A França ¿ arraigada à tradição do funcionalismo público ¿ tem um dos sistemas sociais mais protetores da Europa. A legislação trabalhista limita o tempo de trabalho a 35 horas por semana, garante seis semanas de férias e 80% de salário por dois anos aos demitidos. Quem contesta a demissão na Justiça ganha a causa em 75% dos casos, segundo Raymond Torres, especialista da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O que faz com que empresas, sobretudo pequenas, relutem em contratar.

O país tem uma das maiores taxas de desemprego da Europa ¿ 9,6%. Quase 22% dos jovens de até 24 anos estão desempregados, um índice alto se comparado com 15% na Alemanha, cerca de 14% na Grã-Bretanha e 10% nos EUA. Para muitos franceses, defender o modelo trabalhista francês é brigar pelo ideal de uma Europa social, contra um modelo americano neoliberal. A manifestante Carla Valencia, 26 anos, formada em direito internacional e empregada com um contrato de duração determinada (CDD) ¿ considerado precário pelos manifestantes ¿ tem o discurso de muitos na França:

¿ Para mim, o CPE é o símbolo do bordel neste país e no mundo. As pessoas perderam o sentido do essencial. Criticam-nos por termos uma lei que limita o trabalho em 35 horas. Mas é para que possamos ter tempo para fazer outras coisas na vida. E isso é ruim ? Não sou contra mudança. Mas deve haver outras soluções. A França é rica e pode decidir funcionar de outra forma.

Durão Barroso, presidente da Comissão Européia, disse que países da Europa que optaram por um sistema trabalhista mais flexível estão em melhor situação. Mas especialistas ouvidos pelo GLOBO acham simplista imaginar que os problemas da França se resumem aos sistemas social e trabalhista.

¿ Esta não é a principal razão do desemprego. Se fosse, seria ótimo. Bastaria mudar a lei, para criar emprego. A grande razão é a falta de oferta de emprego, por vários motivos, como falta de investimento público ou consumo privado ¿ explica Peter Auer, da Organização Internacional do Trabalho.

A França, sustenta, precisa flexibilizar leis de proteção ao emprego, mas isso tem que ser acompanhado de benefícios para desempregados, aumento de salário para estimular o consumo, mais investimento público e menos impostos sobre os salários.

Raymond Torres, da OCDE, lembra que na Dinamarca o sistema de proteção ao trabalhador é ainda maior do que na França: um trabalhador demitido ganha 80% do salário durante quatro anos. Mas a taxa de desemprego é menor porque, diferentemente da França, o país investiu em medidas que visam a encontrar logo um trabalho para os desempregados.

¿ É verdade que trabalhadores franceses se beneficiam de uma proteção relativamente extensa. Mas não é excepcional. Dinamarca e Holanda oferecem proteção ainda maior.