Título: AMPLA VISÃO SOBRE O BRASIL
Autor: Mauro Ventura
Fonte: O Globo, 27/03/2006, Segundo Caderno, p. 1

Projeto recupera o maior acervo audiovisual privado do país

Até os anos 80, sempre que iam ao cinema, os espectadores tinham que assistir a um curta-metragem ou cinejornal antes do filme. Os cinejornais eram feitos em geral pelo documentarista Primo Carbonari, duravam nove minutos e aborreciam muita gente, a ponto de ter surgido um trocadilho que brincava com as origens italianas do cineasta: ¿Primo Carbonari, dopo entrare¿ (¿Primeiro Carbonari, depois entrar¿).

Pois há quase um ano um homem passa dez horas por dia, de segunda-feira a sábado, vendo os cinejornais que tanto impacientavam o público. E está adorando.

¿ O retrato que Carbonari fez da elite e da História do Brasil é algo único no país ¿ diz Eugênio Puppo, de 41 anos.

Ele está recuperando o acervo cinematográfico de Carbonari e fazendo um longa-metragem sobre o documentarista, morto na última terça-feira, aos 86 anos.

¿ O projeto é um dos maiores, senão o maior, resgates de memória audiovisual brasileira dos últimos 50 anos ¿ diz.

Durante 45 anos, Carbonari filmou o país. Registrou as posses de todos os presidentes, de Getúlio Vargas a Collor. Virou suas lentes para temas tão diversos quanto a construção de Brasília, a primeira exposição individual de Anita Malfatti, a implantação da indústria automobilística, os desfiles de Sete de Setembro, o primeiro gol de Pelé, as tribos indígenas da Amazônia, os Jogos Pan-Americanos de 63, em São Paulo, e o enterro de Vargas. Na série ¿Primeiro conhece o que é teu para depois conhecer o que é dos outros¿, revelou lugares turísticos e mostrou o Brasil aos brasileiros.

Acervo de Carbonari era composto por 50 mil rolos de filmes

Só de cinejornais ele fez 3.200 edições. Rodou também 11 documentários e duas séries. Estima-se que, em 1994, seu acervo fosse composto por 50 mil rolos de filme. Mas o local onde era guardado, no bairro de Barra Funda, em São Paulo, sofreu uma inundação, por causa do estouro de um cano d¿água, e mais da metade do material se perdeu. Outra parte se deteriorou porque estava dentro de um galpão em latas enferrujadas, expostas ao calor e à umidade. Sobraram oito mil latas, o equivalente a 1.540.000 metros de filmes, algo como 600 longas-metragens de 90 minutos cada. A catalogação de todo o material termina em dez dias. O trabalho, feito por quase 40 estudantes, durou 12 meses ¿ o dobro do tempo previsto.

¿ Quando começamos a abrir as latas, imaginamos que 40% do material estariam descartados, mas, para nossa surpresa, a parte estragada não chegou a 3% ¿ lembra Puppo.

Ele comemorou a descoberta, mas se viu às voltas com um novo problema: o orçamento não previa tanto trabalho, o que gerou uma situação financeira complicada. Puppo conseguiu patrocínio da Petrobras, da Sodexho Pass, do BNDES e da Nossa Caixa, e apoio da Phillips, mas só conta com R$1,45 milhão para recuperar o maior acervo privado do país. Além da restauração, o projeto Ampla Visão, que tem co-produção dos Estúdios Mega e parceria da Cinemateca Brasileira, prevê um filme sobre Carbonari, que será lançado em março de 2007. No site www.heco.com.br/amplavisao, é possível ver o trailer.

¿ No filme, não vou idealizar o cineasta. Vou fazer uma reflexão, uma revisão crítica de sua obra ¿ detalha.

A ressalva faz sentido. Muita gente torce o nariz para Carbonari, acusando-o de mostrar um retrato ufanista do país e de apresentar filmes com deficiências técnicas.

De fato, ele tinha especial predileção pela elite. Registrou como ninguém os hábitos, usos e costumes dos ricos e poderosos, em especial os de São Paulo. Além disso, durante a ditadura, era um entusiasta do Brasil grande preconizado pelos militares e filmou todas as grandes obras da época do milagre econômico, exibidas com locuções do tipo: ¿O governo preocupado com o nosso futuro¿. Quanto à acusação de que seus filmes eram primários, Puppo discorda, lembrando que ele tinha mais preocupação jornalística que técnica.

¿ Há uma parcela do material mal enquadrada e com falta de foco. Mas, se ele estava no Jockey Club e chegava o ex-presidente Médici com a mulher, ligava correndo a câmera. No começo ficava ruim, mas depois ele ajeitava. Nunca vi cenas inteiras fora de foco, tem coisas muito bem filmadas.

Em sua garimpagem, Puppo descobriu raridades, como o discurso do ex-presidente João Figueiredo na inauguração de uma das turbinas de Itaipu. Ele fala por dez minutos, ao lado de Ernesto Geisel e do ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, lembrando os outros presidentes militares e dizendo, emocionado, que eles foram responsáveis por fazer o Brasil crescer.

O filme vai contar o início, o ápice e a decadência de Carbonari, nos anos 80, quando ele fica em situação financeira delicada. Os cinejornais perdem o rumo e abrem mais espaço para imagens bregas, como festas do Havaí na Ilha Porchat, batizados, casamentos, concursos de miss, banquetes e feiras.

Puppo conheceu o material quando organizava uma mostra em homenagem a Walter Hugo Khouri e soube que a única cópia de ¿Os gigantes de pedra¿ estava com a filha de Carbonari, Regina. Começou a freqüentar o acervo do cineasta em 2002, e, à frente de sua Heco Produções, idealizou, com Regina, o projeto, que tem consultoria do crítico Jean-Claude Bernardet.

Paulista, filho de imigrantes pobres italianos, Carbonari nasceu no dia 1º de janeiro de 1920. Também era inventor. Criou a lente Ampla Visão, versão brasileira do cinesmascope.

¿ Os americanos vieram até aqui, achando que ele tinha copiado, mas, depois de examinarem o equipamento, disseram: ¿Parabéns, você inventou o seu cinemascope.¿

Nos últimos cinco anos, dedicava-se à criação de outra lente para cinema. Ele estava muito próximo de fazer filme e projeção em 3D, conta Puppo, que tem escutado muitos depoimentos emocionados sobre o cineasta:

¿ Dizem para mim coisas como: ¿Ele mostrava novidades, trazia o Brasil para a gente.¿ Carbonari queria ser reconhecido como um grande documentarista. E conseguiu.