Título: A ressaca
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 29/03/2006, O País, p. 2

A liturgia costuma traduzir a importância ou a gravidade dos atos oficiais. A crise que levou à queda de Palocci foi uma devastação para o governo Lula, que tentou dar à posse de Mantega, ontem no Planalto, um ar de modorrenta rotina. Esta inversão ritual e o tangenciamento da causa da substituição nos discursos falou da perplexidade e do constrangimento geral no dia da ressaca.

Do outro lado da rua, no Congresso, sentindo a inibição e a fraqueza do governo depois da pancada, a oposição rugiu avisando que a guerra continua e que o alvo agora é Lula.

Palocci é mais um petista que tomba magoado e ressentido, embora ainda não se saiba o que isso pode significar para o futuro de Lula enquanto candidato. A mágoa apareceu nas entrelinhas de seu discurso. O ministro que sai costuma ir apenas à transmissão de cargo, não à posse do sucessor. Palocci fez questão de comparecer e discursar, falando mais de uma vez em altivez, como se não tivesse sido derrubado poucas horas antes pela confissão do ex-presidente da Caixa Jorge Mattoso de que lhe entregou o extrato da conta do caseiro. Era justo que inventariasse seu legado, sua contribuição para a estabilização da economia depois das turbulências eleitorais de 2002 e da ordem atual nas contas públicas. Um legado que as circunstâncias de sua queda tendem a devorar. Depois disso, prometendo não levar mágoa, mostrou que leva, ao afirmar: "Nem mesmo de alguns que, até bem próximos de nós, aceitam palavras que não são as nossas quanto a fatos recentes que, ou são pura acusação, ou são ilações e denúncias sem substância..." Evitando a expressão "quebra de sigilo", afirmou nunca ter atentado contra as leis e as instituições. Na platéia, o senador Mercadante, que na véspera explicara sua saída afirmando que o estado de Direito fora ferido.

Lula, em seu discurso, derramou louvores ao trabalho realizado, manifestações de gratidão e amizade. Mas deu também sua estocada, quando o aconselhou a tirar lições do episódio e mencionou a humildade necessária diante de acusações que não podem ser desmentidas.

Afora esta troca de farpas, a marca dos discursos foi o constrangimento e a anemia política e uma certa exaustão da energia de combate. Palocci ainda chegou a dizer que "nossas instituições políticas estão cravadas de ódio". Admitiu ter sido ingênuo "ao acreditar na convivência pacífica", numa referência clara à sua relação com a oposição, que terminou por acossá-lo, empurrando-o talvez para a busca desesperada de uma saída.

Já no discurso de Lula, nenhuma referência à luta política e nem mesmo uma reiteração da continuidade da política econômica, no momento em que os mercados olham desconfiados para o novo ministro Mantega, tentando vislumbrar inclinações para a mudança, ainda que gradual. Pela primeira vez em muitos anos, diria o empossado, o país combina a inflação controlada com crescimento, redução do desemprego e outros indicadores positivos. Até aqui este quadro econômico tem resistido à voragem da crise política que não arrefece, que o governo realimenta com novos erros e que a oposição mantém acesa com uma disposição bélica nunca vista em anos recentes. Daqui para a frente, e principalmente agora, na transição para o novo comando econômico, testaremos a resistência desta blindagem.