Título: PASSEIO SIDERAL
Autor:
Fonte: O Globo, 29/03/2006, Opinião, p. 6

A missão do astronauta brasileiro é uma espécie de foguete de três módulos - interligados mas autônomos e quase sem comunicação entre si.

O módulo número um é o da realização profissional do tenente-coronel Marcos César Pontes, que há anos se adestra com vocação e empenho admiráveis. Seja qual for o futuro do programa espacial brasileiro, ninguém há de tirar de sua viagem o mérito do pioneirismo.

Como dado biográfico, é um privilégio conhecer a ISS, a Estação Espacial Internacional. Pelo valor proibitivo das tarifas aeroespaciais, essa excursão por ora só está ao alcance de um punhado de milionários excêntricos. Aos demais brasileiros, que acompanham a sua ascensão com os pés presos à Terra, resta desejar a Pontes, em espírito patriótico-ufanista de Copa do Mundo, boa sorte no primeiro passeio de um compatriota por zona de gravidade zero.

O segundo módulo da missão pertence à Rússia e não há, nesse caso, intercâmbio científico-tecnológico. É uma transação comercial comum em que uma parte entra com a vontade de viajar e os russos entram com o transporte - parte do heterodoxo sistema de captação de recursos com que a agência Roscosmos se mantém industriosamente em órbita.

O último módulo é de responsabilidade do Brasil, e envolve recursos públicos. Como um milionário excêntrico, o contribuinte brasileiro está pagando US$10 milhões pela passagem aérea do astronauta de Bauru. O proveito para a ciência nacional das experiências a serem conduzidas por Pontes na ISS - onde será visitante, e não tripulante - é modesto, dizem especialistas, e faria mais sentido investir os dólares diretamente no programa espacial, que precisa mais de dinheiro vivo e constante que de divulgação.

Outras perguntas ficam no ar. Além da nacionalidade do astronauta, o que há de brasileiro numa missão que depende de uma nave Soyuz lançada do Cazaquistão? A missão de Pontes coincide com o centenário do vôo de Santos Dumont e parece uma bela homenagem ao pioneiro da aviação. Mas coincide também com ano de eleição, e é legítimo perguntar quanto existe de pirotecnia eleitoral na experiência cosmonáutica do governo Lula.

Dinheiro da viagem ao espaço teria melhor destino em terra firme