Título: O EXEMPLO VEM DE BAIXO
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 29/03/2006, Opinião, p. 7

Uma ética de condescendência típica das sociedades onde as relações são mais importantes que a cidadania afirma que "o exemplo vem de cima". Os superiores podem ter tudo, mas seriam obrigados a "dar o exemplo". Com isso, eles juntavam ao seu capital de pessoas situadas nos mais altos estratos sociais, aqueles lugares onde falta ar para os comuns, uma sutil consciência de posição, quando equilibravam a posse de dinheiro e poder com um cintilante escrúpulo de lugar. Uma consciência marcada pela obrigação de seguir as regras, justamente porque eram podres de ricos e saudavelmente nobres. Noblesse oblige.

Neste nosso Brasil que, como dizia Darcy Ribeiro, vai vivendo a trancos e barrancos, as conseqüências da democracia liberal e de mercado, que conduzem a uma insuportável competição, a um subversivo igualitarismo e a uma intolerável impessoalidade que leva a lançar mão do "mensalão" para permanecer no poder e do "você sabe com quem está falando?" para evitar o anonimato recorrente da igualdade perante a lei, ficou essa pérola de compensação social representada pelo sempre mencionado e pouco praticado "o exemplo vem de cima".

Tanto que o drama nacional do momento - o uso de todos os recursos fiscalizadores de um governo que se diz popular contra um humilde caseiro que revelou detalhes desagradáveis da conduta do mais alto companheiro do governo Lula, põe em cheque, inverte e carnavaliza o axioma aristocrático segundo o qual o exemplo viria de cima. Ele aponta que onde se oscila entre hierarquia e igualdade, estatismo e mercado o exemplo vem mesmo é de baixo: do fundo e das margens do sistema.

Ou melhor, pode tanto vir de cima, quando os que ocupam altos cargos têm uma consciência cada vez mais rara de honra e amor pelas regras, quanto de baixo, na indicação esquecida de que são os nossos "pobres serviçais" - cozinheiros, babás, lavadeiras, motoristas, jardineiros, passadeiras, contínuos, secretários e, last but not least, caseiros - os verdadeiros vigilantes de nossa vida moral.

Neste sentido, a implacável investigação de um pobre, retirante e eleitor de Lula pelo governo petista configura não apenas uma simples e clara ruptura com as regras constitucionais que dão a todos o direito de proteção contra o Estado, mas traz à tona algo esquecido: a velha e sagrada complementaridade entre fortes e fracos, poderosos e destituídos, ricos e pobres. Exprime a tensão outrora confinada principalmente ao mundo doméstico entre as coisas da casa e da rua que eu explorei com certeza mais do que nenhum outro nas minhas observações sobre o Brasil.

A resistência da casa contra a rua promove uma ética de compensações morais. O que não se tem na rua (cargos importantes, dinheiro no banco, posição social) se tem de sobra em casa (saúde, beleza e, como dizia Noel Rosa, alegria), o que engendra um mundo encantado, repleto de complementaridades. Isso faz com que o "pobre" seja lido como honesto, o rico como um "ladrão" e o poderoso como um "político" (vale dizer, um malandro) em potencial. Eu posso não ter nada mas, em compensação, ninguém pode ter tudo. O que configura o abuso não é o roubo sistêmico entre os pares (todos membros da quadrilha); é, isso sim, a denúncia do destituído (mas imbuído de poder moral) contra o poderoso (mas manchado pelo abuso do poder). O sinal de indignação que justifica o rompimento das lealdades (do último círculo do inferno de Dante) é a marca que mostra a gravidade da acusação. Trata-se do que em antropologia se chama de "poder dos fracos". O poder dos que vêm do fundo ou das margens do sistema como a mulher, o doente, o estrangeiro, a vítima, o injustiçado e os pobres.

Se fôssemos mais igualitários, a denúncia do caseiro não condenaria uma figura de cima ao "terceiro círculo do inferno de Dante", mas a uma mera disputa legal entre cidadãos. Como, porém, entre caseiros e ministros, entre doutores e empregados domésticos, entre ricos e pobres há a diferença financeira e política, mas também existe a crença na pureza dos que labutam humildemente na casa, o confronto promove uma indignação geral. Isso explica por que Antonio Palocci não caiu quando foi denunciado por colaboradores, mas caiu quando acusado por um humilde caseiro. Pois são os empregados da casa (esse espaço sagrado) que, categorizados como pobres, sustentam e garantem a nossa generosidade, honra e honestidade.

Mais: é a reversão encapsulada na denúncia direta e, pelas regras de nosso mundo moral pessoalizado, imprópria do superior pelo inferior que revela um outro paradoxo ainda mais grave, parte deste calvário do PT enquanto governo. Refiro-me ao fato de ser justamente nesta administração voltada para os pobres e trabalhadores que o governo federal joga contra um humilde caseiro toda a máquina fiscalizadora do Estado. Ao tratar um pobre como inimigo, o governo Lula revela as dificuldades e os limites do populismo hierárquico e estatizante num mundo marcado pela disputa igualitária e pelo mercado eleitoral.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.

Ao tratar um pobre como inimigo, o governo Lula exibe limites do populismo