Título: Desordem do dia
Autor: Tereza Cruvinel
Fonte: O Globo, 01/04/2006, O GLOBO, p. 2

Nos idos do regime militar, cada Ordem do Dia do Exército era esperada com ansiedade. Muita hermenêutica foi gasta na decifração delas: endurecimento ou abertura? Linha dura imperando ou mais contida? Na democracia, estas bulas perderam importância e desapareceram. Evocações do 31 de março de 1964 também. A de ontem, assinada pelo general Albuquerque, foi nota desafinada, idéia fora do lugar. Nem por isso deve causar exaltação. A democracia garante, inclusive, a livre comemoração, respeitado o direito dos outros.

A nota estava pronta há alguns dias. A infeliz coincidência com a anúncio de um auxiliar do presidente deposto João Goulart, ex-cassado e ex-exilado, o ministro Waldir Pires, para a pasta da Defesa, aumentou seu realce, havendo quem enxergasse nela uma provocação. Waldir deu prova de ser um democrata, repelindo a intolerância que tem sido adubada pelos dias que atravessamos. Repeliu o golpe como equívoco e disse um solene ¿Nunca mais¿. Mas considerou normais a evocação e a nota:

¿ Eu respeito a opinião de cada um. O que temos que garantir com as Forças Armadas é a soberania.

O mal-estar dos que não gostaram também é compreensível, a começar pelo do grupo Tortura Nunca Mais, que ainda procura por desaparecidos políticos e clama pela abertura dos arquivos que podem conter as respostas ansiadas por tantos familiares. Albuquerque ocupa o posto por escolha de um presidente que foi vítima da ditadura e tem entre seus ministros ex-torturados e ex-cassados. Passaria muito bem sem esta nota. O ambiente em que vivemos, marcado pela desilusão com os políticos, talvez o tenha estimulado. Não raro deparamos com uma manifestação de saudade da ditadura. Por aí, nas conversas, nas cartas de leitores, nos comentários aos blogs. Alguns o fazem por ignorância. Não sabem o que foi a ditadura. Outros, por pura exaltação contra o presente. O general é mais feliz quando diz que tal passado agora ¿pertence à História¿ e que o Exército hoje ¿volta-se para o futuro trabalhando pelo desenvolvimento nacional¿. Se tivesse parado por aí, não teria virado notícia nem ressuscitado o o mau momento em que sua queixa fez um avião da TAM voltar da pista para embarcá-lo.