Título: BUSH E A POLÍTICA ENERGÉTICA DA MÁ-FÉ
Autor: JOSEPH E. STIGLITZ
Fonte: O Globo, 02/04/2006, Opinião, p. 7

Uma das sessões mais surrealistas do Fórum Econômico Mundial em Davos este ano teve especialistas da indústria de petróleo explicando que o derretimento da calota polar ¿ em ritmo mais acelerado do que se previa ¿ é não só um problema mas também uma oportunidade: vastas quantidades de petróleo agora podem se tornar acessíveis.

Na mesma linha de raciocínio, esses especialistas admitem que o fato de os Estados Unidos não terem assinado a Lei do Mar, a convenção internacional que determina quem tem acesso ao petróleo do mar e outros direitos minerais marítimos, representa um risco de conflito internacional. Mas também chamam a atenção para o lado positivo: a indústria petrolífera, em sua infindável pesquisa por novas reservas, não precisa suplicar ao Congresso o direito de saquear o Alasca.

O presidente George W. Bush tem uma habilidade sobrenatural para não enxergar a mensagem principal. Durante anos, tem ficado cada vez mais claro que há algo de muito errado com sua política energética. Ao mesmo tempo em que louva as virtudes do livre mercado, Bush tem se mostrado disposto a dar imensas esmolas à indústria petrolífera, mesmo numa fase em que o país enfrenta déficits altíssimos.

Há uma deficiência de mercado no que diz respeito a energia, mas a intervenção governamental deveria ir na direção oposta à que o governo Bush propôs. O fato de os americanos não pagarem o que deveriam pela poluição ¿ especialmente sua enorme contribuição ao efeito estufa ¿ resultado do uso extravagante de energia, significa que a energia está custando menos do que deveria, o que, por sua vez, alimenta o consumo excessivo.

O governo precisa encorajar a conservação. Intervir nos preços ¿ especificamente por meio de taxas sobre o uso de energia ¿ é uma maneira eficaz de fazê-lo. Mas, em vez de encorajar a conservação, Bush tem adotado a política de ¿esvaziar primeiro os Estados Unidos¿, deixando o país mais dependente do petróleo externo no futuro. Isso sem levar em conta que a demanda forte faz os preços do petróleo subirem, resultando em ganhos inesperados para muitos países do Oriente Médio que não estão entre os amigos dos Estados Unidos.

Agora, mais de quatro anos depois dos ataques terroristas de setembro de 2001, Bush parece finalmente ter acordado para a realidade da crescente dependência da América. Com os preços do petróleo nas alturas, foi difícil para ele não perceber as conseqüências. Mas, repita-se, as hesitantes medidas do seu governo certamente vão piorar as coisas num futuro próximo. Bush ainda se recusa a fazer seja o que for para incentivar a conservação de energia, e por trás de sua contínua ladainha sobre a capacidade salvadora da tecnologia, investiu muito pouco dinheiro.

Como interpretar, portanto, a recente declaração de Bush sobre um compromisso de reduzir em 75%, nos próximos 25 anos, a dependência americana do petróleo do Oriente Médio? Para os investidores, a mensagem é clara: não invistam mais no desenvolvimento de reservas no Oriente Médio, de longe a mais barata fonte de petróleo do mundo.

Mas sem novos investimentos para desenvolver reservas no Oriente Médio, o crescimento desenfreado do consumo de energia nos Estados Unidos, na China e em outros países implica que a demanda vai superar a oferta. Não bastasse isso, a ameaça de Bush de impor sanções ao Irã representa um risco de interrupção no fornecimento por um dos maiores produtores de petróleo do mundo.

Com a produção mundial de petróleo perto de sua plena capacidade e os preços quase duas vezes acima dos níveis anteriores à Guerra do Iraque, isso prenuncia preços ainda mais altos, e lucros ainda maiores para a indústria petrolífera ¿ único ganhador inequívoco da política de Bush para o Oriente Médio.

Mas não se deve censurar Bush por ter finalmente reconhecido que existe um problema. Como sempre, entretanto, um exame mais atento do que está sendo proposto sugere que seu governo está tentando outro passe de mágica. Além de se recusar a reconhecer a importância do aquecimento global, a encorajar a conservação, ou a investir o suficiente em pesquisa para de fato obter resultados, a grandiosa promessa de Bush de reduzir a dependência do petróleo do Oriente Médio representa menos do que parece. Com apenas 20% do petróleo americano vindo do Oriente Médio, esse objetivo pode ser alcançado com uma modesta troca de fontes de abastecimento.

Mas o governo Bush precisa se dar conta do peso do petróleo num mercado global. Mesmo que a América fosse cem por cento independente do petróleo do Oriente Médio, uma redução na oferta de petróleo do Oriente Médio poderia ter efeitos arrasadores nos preços mundiais ¿ e na economia americana.

Como acontece com freqüência com o governo Bush, não há explicação lisonjeira para a política oficial. Bush estará fazendo uma jogada política ao explorar o sentimento antiárabe e antiiraniano nos Estados Unidos? Ou este é apenas mais um exemplo de incompetência e confusão? Pelo que vimos nos últimos cinco anos, a resposta correta provavelmente é que aí entra mais que uma pequena dose de má-fé e pura inépcia.

JOSEPH E. STIGLITZ é economista.