Título: Cartas revelam torturas a menores infratores
Autor: Ruben Berta
Fonte: O Globo, 02/04/2006, Rio, p. 24

Denúncias de jovem de classe média resultam em afastamento da direção do Educandário Santo Expedito

No dia 30 de outubro de 2005, um jovem, de classe média e já com de 18 anos, internado no Educandário Santo Expedito, para menores infratores, em Bangu, decidiu unir pela primeira vez papel, caneta e a vontade de desabafar: ¿Venho por meio desta escrita narrar o que realmente acontece com quem vive atrás das grades¿, dizia o rapaz na carta entregue à mãe, mas endereçada a uma defensora pública. São relatos de espancamento, tortura psicológica e ameaças, que resultaram no afastamento da direção da unidade no início de março, mas estão longe de desaparecer da rotina dos internos do Departamento Geral de Ações Sócio-Educativas (Degase).

¿ Depois de tudo que vi, depois de tudo que passei, percebi que o mundo está terrível. Eu sei que eu não tenho o poder de mudar nada, mas sei que só a minha revolta não ia dar em nada. Se agora for a hora de chegar ao fim da minha vida, pelo menos eu fiz um pouquinho de coisa boa

¿ contou o jovem em entrevista no ESE na última sexta-feira.

De acordo com o ex-secretário estadual de Infância e Juventude (a pasta foi extinta na quinta-feira passada) Evandro Steele, há pelo menos 50 sindicâncias em andamento para apurar maus-tratos nas unidades do Degase. Os casos estão sendo analisados por uma comissão externa criada por ele no mês passado. De um ano e meio para cá, direções do Instituto Padre Severino (IPS) e de dois Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor (Criams) do interior do estado foram afastadas após denúncias de espancamento, uso de drogas e até abuso sexual. A superlotação faz do sistema uma escola do crime: nas cinco unidades de internação, há 900 menores onde caberiam 600.

O jovem, de cujas cartas o GLOBO teve acesso, chegou ao ESE em março do ano passado, após ser apreendido durante um roubo em que dirigia o veículo onde estava com os comparsas. Ele começou no crime aos 13 anos depois de romper temporariamente as relações com a mãe para ir morar numa favela. Os anos fora da lei, ele admite, trouxeram lucro fácil, e possibilitaram ¿até temporadas em apartamentos na quadra da praia na Zona Sul¿.

Em julho do ano passado, o rapaz fugiu. Em outubro, foi recapturado e, numa das primeiras visitas à unidade, no dia 30, sua mãe percebeu que havia algo de errado.

¿ Vi que ele estava com marcas nos braços e perguntei a ele o que era aquilo. Ele me disse que eram as ¿boas-vindas¿ que um agente deu a ele. Mas contou que o pior foram os tapas no ouvido. Ele me mostrou os cotonetes cheios de sangue ¿ lembra a mãe.

No mesmo dia, o jovem entregou a primeira carta com destino a uma defensora: ¿Se alguém sofrer maus tratos,...é coagido a falar que a luxação ou a fratura foi causada pelo futebol. Quais são os tipos de ameaças feitas para que os adolescentes não contem as coisas que acontecem? São as de mais agressões ou ` medidas sócio-educativas¿,¿ diz o texto.

Na primeira semana de volta ao ESE, o jovem relatou ter sido levado a uma cela conhecida como MS, ou massacre, um espaço sem camas, e pouquíssimas ventilação e iluminação. Havia apenas uma garrafa para os que estavam ali urinarem. Lá, ele teria sido colocado nu e apanhado de agentes na frente de outros internos. Na mesma semana, ainda teria sido obrigado a limpar todas as caixas de esgoto das galerias.

Sua primeira carta não chegou a surtir muito efeito. Já a segunda mexeu com a estrutura da unidade. Uma denúncia anônima recebida no início de fevereiro pela 2ª Vara de Infância e Juventude já alertava para sessões de espancamento promovidas por três agentes na noite de Natal do ano passado. Os funcionários ainda teriam atirado para o alto apesar de não poderem portar armas no internato. Trinta jovens foram convocados a depor, mas não confirmaram a denúncia.

O jovem de classe média estava entre os convocados, mas também negou. Ele aguardou para poder confirmar a denúncia. No início de março, ele mandou uma nova carta à mãe, com destino à 2ª Vara, assinada por outros dois colegas de cela: ¿No dia 24 de dezembro, o funcionário estava armado com uma pistola de uso da polícia e fez alguns disparos¿, dizia o texto. O rapaz não parou nas palavras: conseguiu com um colega que trabalhava na reciclagem de lixo da unidade as cápsulas de balas e deu para a mãe como prova.

¿ Sonhava em ser advogado. Ainda tenho esse plano na cabeça ¿ justifica o jovem.

No mesmo dia, a mãe levou as cápsulas para a 2ª Vara acompanhadas de mais uma prova das torturas na unidade, recolhida por seu filho. Remédios de tarja preta seriam usados durante as sessões de espancamento para que os jovens resistissem por mais tempo. As provas passaram por perícia e foram anexadas ao processo.

No 8 de março, o jovem foi ouvido pela Justiça. Após a audiência, ficou determinado o afastamento de três agentes, além da direção da unidade. No dia 21, foi a vez dos dois colegas do jovem, que confirmaram todas as acusações sobre a noite de Natal. Após o depoimento, eles foram transferidos para o IPS, mas já retornaram ao ESE.

Apesar das mudanças, o ESE ainda vive um momento delicado. Um outro jovem, ouvido na última sexta-feira pelo GLOBO, denunciou um novo caso de tortura na unidade, que teria ocorrido na última terça-feira. Após gritar durante a noite por causa de uma dor de dente, ele não só não teria sido atendido como ainda teria sofrido represálias:

¿ Tomei muitos tapas na cara. Tiraram os 30 que estavam comigo na cela e tivemos que passar a noite na MS. Dormimos um em cima do outro no local cheio de urina.

O diretor-geral do Degase, Jaques Cavalcanti, nega a denúncia. Segundo ele, há um clima tenso na unidade por causa da presença do irmão de um chefe do tráfico. Em revistas na semana passada, foram achados estoques, canivetes e uma forca, que estariam sendo preparados para uma disputa entre facções rivais.

Esta semana acontecerá a audiência que define a extinção ou não da pena do jovem de classe média, além da punição definitiva dos agentes.