Título: Juros quilométricos
Autor: Luciana Rodrigues e Patricia Eloy
Fonte: O Globo, 02/04/2006, Economia, p. 35

Sociedade paga ao ano R$267 bi, que em notas de cem enfileiradas ligariam Rio a SP

Uma soma de dinheiro que, se disposta em notas de cem reais lado a lado, percorreria os 400 quilômetros que separam Rio de São Paulo. Quantia suficiente para comprar tudo o que o Chile produziu em bens e serviços ao longo de 2005. Montante que daria para construir 6,7 milhões de casas populares. Isso é o que a sociedade brasileira paga de juros anualmente: R$267,3 bilhões. Nada menos do que R$732 milhões por dia. O cálculo inédito, feito pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio), considerou os gastos de governo, empresas e famílias com o alto custo do crédito no Brasil. E chegou a cifras astronômicas.

Os juros pagos pelo país consomem 90% da renda das famílias de São Paulo, o estado mais rico da Federação. Representam oito meses do que o governo arrecada com impostos. Ou seis meses e meio de vendas do comércio varejista.

¿ Esse dinheiro, em vez de ser destinado ao consumo, o que incentivaria a produção, o crescimento da economia e a geração de empregos, vai para o giro financeiro ¿ diz o diretor-executivo da Fecomercio, Antonio Carlos Borges.

Ele explica que o peso dos impostos para a sociedade já é conhecido: a carga tributária brasileira está em cerca de 38% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de riquezas produzidas pelo país). Mas o fardo dos juros ainda não havia sido estimado.

Crédito é ferramenta para crescimento

Além de considerar os encargos do governo com a dívida pública ¿ são R$155,4 bilhões por ano, segundo dados do Tesouro Nacional ¿ o estudo da Fecomercio levantou no Banco Central o volume de crédito destinado a pessoas físicas e jurídicas. Considerando as taxas médias fixadas nas diferentes modalidades de crédito, ao longo de cada mês, chegou-se ao montante total de R$267,3 bilhões de juros pagos pela sociedade brasileira.

O administrador de empresas Carlos Motta sabe bem o peso dos juros. Em 1999 ele comprou um terreno em Arraial do Cabo por R$13 mil, parcelados em 96 meses. Com o financiamento, o valor do terreno chegaria a R$24 mil.

¿ Pagaria quase o dobro do valor, mas à vista não teria condições de comprá-lo. O problema é que só consegui arcar com 48 prestações e agora tento devolver o terreno ao banco e receber parte do que paguei de volta. A gente tem o hábito de pensar se a parcela cabe no bolso e não vê os juros altos, mas quando acontece um imprevisto, eles pesam no orçamento ¿ diz Motta.

O imprevisto foi a falência da sua empresa, que inviabilizou o pagamento do parcelamento do terreno e de outras dívidas:

¿ Tinha um empréstimo de R$8 mil no banco que se transformou, com os juros e multa por atraso, em quase R$28 mil, tornando-se impagável. E, com o nome sujo, não consigo arrumar emprego para pagar as dívidas e assim, limpar meu nome na praça. É uma ciranda perversa ¿ diz ele.

Professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV), José Cezar Castanhar lembra que a política de juros no Brasil só é discutida sob o aspecto do controle da inflação:

¿ Mas há o outro lado da moeda, que é impor um ônus dramático a toda a sociedade. São duas perdas. Um prejuízo imediato de pagamento dos juros. E uma perda de médio e longo prazo, que é o menor crescimento econômico.

Castanhar lembra que, devido aos juros altos praticados no Brasil, é senso comum que o melhor é poupar antes para consumir ou investir depois. Mas, em economias modernas, diz o professor da Ebape/FGV, o crédito é uma ferramenta fundamental para antecipar o crescimento futuro. Por meio de financiamentos, as famílias consomem bens para sua necessidade ou comodidade. E as empresas expandem suas operações, trazendo para o presente um crescimento que, de outro modo, só seria alcançado no futuro.

¿ Os juros são um lastro, um peso morto que segura a economia brasileira. Representam uma enorme transferência de renda da população para o setor financeiro ¿ afirma.

Não por acaso, diz Borges, da Fecomercio, enquanto a economia brasileira cresce a taxas medíocres, o sistema financeiro apresenta recordes de lucros. Ele ressalva, porém, que o grande tomador de recursos do setor financeiro é o governo, para financiar a dívida pública, responsável também pela alta carga tributária do país. Segundo ele, juros e impostos já representam a quarta maior despesa das famílias no Brasil, atrás apenas de habitação, alimentação e transporte.

O economista Antonio Licha, coordenador do Grupo de Conjuntura da UFRJ, lembra que o crédito total (empresas, famílias e parte do governo) representava cerca de 31% do PIB em fevereiro, um crescimento acelerado em relação aos 28% registrados há três meses.

Preocupação com gastos públicos

Licha avalia que, embora os juros tenham um peso significativo sobre o orçamento das famílias, a expansão da renda deve compensar o endividamento maior, além de financiar o crescimento do país. Para ele, a maior preocupação está nos juros pagos pelo governo.

¿ Acendeu uma luz amarela. Até o ano passado, o governo era cauteloso nos gastos públicos, mas agora afrouxou o cinto. Num ano eleitoral, o endividamento pode crescer num ritmo acelerado. E, num cenário de estresse, investidores podem temer o não pagamento de parte da dívida, o que geraria uma venda de títulos públicos, causando um risco de curto prazo ¿ alerta.

QUASE METADE DOS CARIOCAS ESTÁ EM ATRASO OU NÃO VAI PAGAR EMPRÉSTIMOS, na página 35