Título: Vingança do invisível
Autor: Míriam Leitão
Fonte: O Globo, 02/04/2006, Economia, p. 36

Um psicólogo foi trabalhar como gari na universidade onde estudava. Era parte da tese defendida na USP. Um dia, por força do trabalho de gari, teve que atravessar as dependências do Instituto de Psicologia: cruzou com professores e alunos e ninguém o viu. Após nove anos de experiência, Fernando Braga da Costa escreveu o livro ¿Homens invisíveis: relatos de uma humilhação¿. Num país assim, chega a ser irônico que invisíveis derrubem presidente e ministro.

O motorista Eriberto França foi o personagem central da queda do presidente Fernando Collor; o caseiro Francenildo Costa foi o personagem central da queda do ministro Antonio Palocci, o mais forte ministro do governo Lula. O que há de comum entre Eriberto e Francenildo é que, certamente, não foram vistos até virarem celebridades. Aí passaram a ser hipervistos. Hoje, Eriberto é funcionário público; Francenildo está sendo adulado por uma parte da elite, por oportunismo eleitoral. Aparece assustado e pouco confortável no papel de herói de uma elite que, em outras circunstâncias, não o veria. PSDB e PFL mimam e exploram a imagem do ex-invisível da mesma forma que o PT usou e abusou de Eriberto França em 92.

Os ex-invisíveis dão lições impressionantes quando ainda podem falar com simplicidade. Eriberto foi a peça central de um quebra-cabeça. O ex-presidente Collor sustentava que não recebia dinheiro de PC Farias. Eriberto foi o elo perdido. PC Farias depositava dinheiro na conta de fantasmas e, dessas contas, eram sacados por Eriberto, por ordem da secretária de Collor, os valores usados para pagar todas as despesas da Casa da Dinda e gastos pessoais do presidente. Quando se dispôs a enfrentar o empregador e presidente, um deputado lhe perguntou:

¿ Por que você está fazendo isso? É só por patriotismo?

¿ E o senhor acha pouco? ¿ perguntou o motorista.

O deputado que desconfiava da motivação de Eriberto era, por ironia do nosso destino, Roberto Jefferson. Dele não se pode desconfiar que tenha feito o que fez por patriotismo.

O PT transformou Eriberto em herói. Ele viajou pelo Brasil falando sobre seus feitos. Virou superstar. Depois virou motorista do Ministério dos Transportes. Em agosto de 2003, o governo Lula demitiu 200 pessoas e na lista estava Eriberto França:

¿ Não consigo acreditar que Lula fez isso comigo ¿ disse Eriberto.

A imprensa explorou o fato. Ele saiu, de novo e por alguns segundos, da invisibilidade. O governo voltou a contratá-lo. Está lá quietinho e não quer mais falar nada.

A história de uso e descarte pode se repetir agora com Francenildo, o caseiro que promete confirmar até a morte que viu o ex-ministro Antonio Palocci na casa do lobby. Já seria uma celebridade de ocasião por dizer isso, mas foi ainda vítima de um crime e, assim, acabou virando a peça que faltava para derrubar a peça-chave do governo Lula.

O livro do psicólogo Fernando Braga da Costa traz lições mais permanentes do que as que os nossos escândalos conseguem mostrar. No livro, é possível uma reflexão mais profunda sobre um dos defeitos do Brasil: o mal disfarçado e nunca assumido preconceito contra os pobres. Aliás, o Brasil até assume preconceito social, desde que seja para negar o racial. Quem nunca ouviu a frase: no Brasil existe ¿só¿ discriminação social? É como se isso abrandasse a ignomínia.

Durante nove anos, Fernando se vestiu de gari uma vez por semana, viveu sua rotina, seu trabalho estafante, mas, principalmente, sentiu na pele o desprezo dos visíveis na nossa injusta escala social.

¿No intervalo entre aulas no Instituto de Psicologia, foi preciso que eu passasse por dentro do prédio daquela faculdade. Imaginei então que, vestindo aquele uniforme ali incomum ¿ calça, camisa e boné vermelhos ¿ fosse chamar a atenção de toda a gente: colegas de classe, professores, curiosos. Entramos pela porta principal, Antonio (um dos garis) e eu. Percorremos o piso térreo, as escadas, o primeiro andar. Não fui reconhecido. E as pessoas pelas quais passávamos não reagiam à nossa presença. Talvez uma ou outra tenha se desviado de nós, como desviamos de obstáculos, objetos. Nenhuma saudação corriqueira, um olhar, sequer um aceno de cabeça. Foi surpreendente. Eu era um uniforme que perambulava: estava invisível. Antonio estava invisível. Saindo do prédio, estava inquieto; era perturbadora a anestesia dos outros, a percepção social neutralizada.¿ Em outras ocasiões, ele até fez gesto corporal para cumprimentar colegas e professores. Uma vez, junto com outro gari, quase foi atropelado por um carro que passou quando eles atravessavam uma rua interna da universidade. Não foi visto.

O ministro não viu o caseiro, o presidente não viu o motorista, os brasileiros das classes sociais mais altas não vêem, não falam, sequer cumprimentam os brasileiros que fazem serviços considerados de menor importância social. O publicitário nem percebia o que acontecia com uma de suas secretárias que, para sua desgraça, anotava tudo na sua ameaçadora agenda. O presidente do Sebrae, Paulo Okamotto, fez o oposto: acusou a secretária de não tê-lo visto. A culpa é da secretária.

A quebra do sigilo bancário foi uma rotina durante a época do PT na oposição. Era feita através dos militantes espalhados dentro dos bancos. Foi não um episódio, mas uma prática. Tem que ser tratada dentro dos abusos inaceitáveis aos direitos individuais.

Mas há uma outra parte da história recente, revelada em Francenildo, Eriberto e outros, que merece reflexão. Parece ser a vingança dos invisíveis.