Título: NA PRÁTICA, PAÍS JÁ INICIOU REFORMA TRABALHISTA
Autor: Geralda Doca
Fonte: O Globo, 02/04/2006, Economia, p. 41

Juízes estão decidindo sobre temas não previstos na CLT, como uso de e-mail, assédio moral e discriminação

BRASÍLIA. Os trabalhadores brasileiros têm hoje mais possibilidades de recorrer à Justiça trabalhista para fazer valer seus direitos em situações desconsideradas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou impensáveis quando ela foi elaborada. Como a legislação não foi atualizada, os juízes estão despachando decisões em causas envolvendo as novidades do mercado, como uso do celular e de e-mails, terceirização, assédio moral e discriminação, além de novas profissões. É como se a reforma trabalhista, em alguma medida, estivesse sendo feita na prática.

Desde que teve seus poderes ampliados, com a reforma do Judiciário há um ano, a Justiça do Trabalho passou a cuidar de qualquer relação trabalhista e não só daquelas com vínculo empregatício. Com isso, autônomos, representantes comerciais, corretores, trabalhadores avulsos, contratados por terceiros e ensacadores ganharam um canal específico.

Só o Tribunal Superior do Trabalho (TST) recebeu cerca de 500 processos que estavam espalhados. E as instâncias inferiores já recebem uma infinidade de novas ações. A engenheira Carolina Passos Ferreira é um exemplo. Após quatro anos nos canteiros de obra de uma firma de engenharia da Bahia, ganhando metade do salário dos colegas homens, entrou na Justiça por assédio moral e discriminação. A empresa foi condenada a equiparar o contracheque e indenizá-la em R$5 mil.

¿ É pouco, mas já representa um avanço. Dificilmente a Justiça dava ganho de causa por dano moral ¿ comemora Carolina, hoje funcionária pública.

Professor foi indenizado por sofrer maus-tratos de alunos

Devido a maus-tratos de alunos e diretores de uma universidade de Brasília, o professor José Roberto de Lima Bueno ganhou ação similar:

¿ Fiquei indignado quando soube que minha demissão fora decidida na cama. Uma aluna era namorada do diretor!

Mas não é só a Justiça que tenta adequar as normas à nova realidade. Empregadores e trabalhadores também estão se antecipando à reforma com acordos coletivos que mudam pontos da CLT, como jornada de trabalho e hora extra. Ou inovam, como na adoção da Participação no Lucro e Resultado.

As próprias negociações refletem uma flexibilização na legislação. As centrais sindicais não existem no papel e, por isso, não poderiam representar os trabalhadores. Mas ganharam força. Reúnem-se com o governo e fizeram as montadoras aceitar comissões de fábrica. Os metalúrgicos de São Paulo chegaram a um acordo para que acidentados com lesão permanente tenham estabilidade até a aposentadoria ¿ e não por um ano após a alta como diz a lei.

Na semana passada, o TST deu aval a uma negociação dos motoristas de ônibus urbanos do Rio, que abre precedentes. Em vez de tirar uma hora corrida de almoço, conforme prevê a lei, eles descansam cinco minutos na parada e trabalham menos uma hora por dia.

¿ Como a CLT não dá conta da realidade, os acordos vão avançando ¿ diz o advogado trabalhista Siqueira Neto.

O presidente do TST, Vantuil Abdala, destaca que não há legislação que trate da terceirização, um dos maiores fenômenos do mercado. Apenas uma súmula do tribunal trata de casos irregulares. É a situação das cooperativas de serviços e da contratação de funcionários como pessoas jurídicas (que não assinam recibos nem pagam impostos e não têm direitos como FGTS e INSS).

Foi assim que a funcionária pública Franciele Carvalho de Oliveira ganhou uma causa contra um grande banco. Ela era funcionária de uma cooperativa contratada como digitadora por uma terceirizada da instituição. Ficou caracterizado o vínculo e o banco teve que pagar os direitos devidos.

Também com base numa súmula do TST, que iguala trabalhadores de cooperativa de crédito aos bancários, dois ex-funcionários da prestadora de serviços de uma grande montadora em Brasília saíram vitoriosos. Eles exerciam atividades típicas de banco: faziam análise de cadastro e fechavam contratos, mas ganhavam como comerciários. A Justiça determinou a equiparação:

¿ Trabalhava duas horas a mais que os bancários e recebia menos ¿ conta Iege Wesguebre Machado, que deu entrada num apartamento com a indenização.

Apesar das mudanças, há queixas de que a Justiça é conservadora e tende a barrar acordos não previstos na CLT. Para o presidente do Conselho de Relações do Trabalho da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Dagoberto Godoy, os acordos se limitam à jornada.

¿ Os sindicatos estão limitados ao estabelecido na lei. Isso prejudica as entidades representativas ¿ diz o consultor jurídico da Força Sindical, Antonio Rosella.