Título: A CULPA DE CADA UM
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 04/04/2006, O País, p. 4

Os desdobramentos da quebra ilegal do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa colocam as investigações cada vez mais próximas do presidente Lula. Em qualquer versão, ele peca, no mínimo por omissão, e o ministro da Justiça fica em situação embaraçosa. Pela versão oficial, o ministro Márcio Thomaz Bastos alertou pessoalmente o presidente de que todos os indícios levavam a crer que o ministro Palocci fora o autor da ordem para a ação ilegal, e também para divulgação do extrato da Caixa Econômica Federal.

Bastos baseava-se na declaração de dois assessores seus, o secretário de Direito Econômico Daniel Goldberg e o chefe de gabinete do Ministério da Justiça, Cláudio Alencar, que estiveram na casa de Palocci na mesma noite em que lá apareceu o presidente da Caixa, Jorge Mattoso, com o fatídico extrato.

Não é possível garantir, embora seja bastante provável, que os dois assessores do ministro da Justiça tenham visto o que havia dentro do envelope que Mattoso entregou a Palocci. Mas, mesmo que não tenham visto, eles receberam pedido de Palocci para abrir um processo na Polícia Federal contra o caseiro, por movimentação financeira incompatível com seu salário. A revista ¿Veja¿ afirma que Cláudio Alencar chegou a pedir à Polícia Federal que investigasse o assunto.

Quando, no dia seguinte, viram o extrato divulgado no site da revista ¿Época¿, certamente entenderam a gravidade do acontecimento, e que o ministro Palocci estava por trás da divulgação, inclusive porque estava na casa naquela noite o assessor de imprensa de Palocci, o jornalista Marcelo Netto. Desse momento em diante, passaram-se cerca de dez dias até que o presidente Lula demitisse Palocci, o que já caracterizaria, no mínimo, a omissão do presidente e do ministro da Justiça.

Na versão mais corrente na oposição, a presença dos dois assessores do ministro da Justiça na casa de Palocci àquela hora da noite, por volta das 23 horas, ao mesmo tempo em que Mattoso entregava o extrato, não seria mera coincidência. A começar pelo fato de que o caseiro entregara seus documentos, entre eles o cartão de sua poupança na Caixa, na Polícia Federal, onde estava para entrar no programa de proteção à testemunha. Por essa versão, o ministro da Justiça ajudou Palocci a montar o esquema que teoricamente desmoralizaria o depoimento do caseiro, o que o colocaria como co-autor do crime.

Essa versão, na minha opinião, não se sustenta por uma simples razão: o ministro Márcio Thomaz Bastos sugeriria diversas maneiras legais para quebrar o sigilo bancário do caseiro, e certamente não concordaria com uma ilegalidade tão flagrante. Se não por uma questão de honestidade pessoal ¿ na qual acredito ¿, no mínimo porque sabe melhor do que ninguém as conseqüências jurídicas de um tipo de atitude como essa.

Outra versão dá conta de que, diante do fato consumado, o ministro Thomaz Bastos lutou dentro do governo para demitir o ministro Palocci, mas não o denunciou imediatamente, como deveria ter feito para evitar que ele ou o presidente Lula ficassem expostos a essas suspeitas da oposição.

Não existe qualquer evidência de que o presidente Lula, ou o ministro da Justiça, tenham sabido da decisão de quebrar o sigilo bancário do caseiro, mas as há quanto ao presidente ter recebido informações sobre depósitos na conta do caseiro antes mesmo de o extrato ter sido divulgado pela revista ¿Época¿.

Até mesmo aquela história mal contada da senadora Ideli Salvatti, que estava com o presidente quando ele foi comunicado de que a revista publicaria provas contra o caseiro e o presidente, segundo a senadora, fez cara ¿de quem já sabia¿. Depois, explicou que a cara era de ¿já desconfiava¿.

Nada há de ilegal no fato de o presidente receber informações de um senador petista, ou de um auxiliar direto, sobre suspeitas contra alguém que testemunha contra o governo. Mas, ao ver divulgado em uma revista o extrato da conta da poupança do caseiro, uma luz vermelha deveria ter se acendido para Lula.

Dificilmente um criminalista experiente como o ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos não alertaria o presidente sobre as implicações desse fato, e do que ele indicava. O presidente Lula, porém, só decidiu demitir o ministro da Fazenda dez dias depois, quando já estava evidente que um crime havia sido cometido, provavelmente pelo próprio Palocci, e não havia como protegê-lo depois que o presidente da Caixa disse na Polícia Federal que entregara o extrato a Palocci.

Setores da oposição acham que o presidente tinha o dever legal de demitir o ministro, em vez de deferir o ¿pedido de exoneração¿, e comunicar o fato ao Ministério Público Federal. Não o fazendo, teria cometido dois ilícitos penais: o crime de condescendência criminosa, previsto no artigo 320 do Código Penal, e a contravenção penal omissão de comunicação de crime, prevista no artigo 66, inciso I, do decreto-lei 3.688, de 3 de outubro de 1941.

Comprovado o conhecimento do presidente, o processo de impeachment seria baseado no artigo 9º, 3 da lei 1079 de 10 de abril de 1950, que diz o seguinte: ¿não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição¿.

Mesmo diante das informações que possuía àquela altura, o presidente fez um discurso na despedida de Palocci em que o caso do sigilo quebrado ilegalmente parece não ter acontecido. O mais aconselhável seria que o presidente Lula se mantivesse calado na transmissão de cargo, como fez na saída do ex-ministro José Dirceu. A se acreditar que é verdade que o presidente Lula não soube da decisão de quebrar o sigilo bancário, nunca ele teve tanta razão para se dizer traído quanto nesse episódio.