Título: O QUE FALTA AO HAITI É SOLIDARIEDADE
Autor: FIRTO RÉGIS
Fonte: O Globo, 06/04/2006, Opiniao, p. 7

Hoje em dia se fala muito de cooperação com o Haiti. Para que seja útil e proveitosa é bom esclarecer alguns pontos.

Na última metade do século XX, vários países intervieram no Haiti, cada um segundo seus interesses próprios. Assim, podemos definir três tipos de cooperação internacional que estão ainda vigentes.

O primeiro tipo, que é o mais forte, pode ser qualificado de intervencionista. Três países se destacam neste grupo: os Estados Unidos, a França e o Canadá. Sua atuação é, sobretudo, na área diplomática e política com ingerência indevida nos assuntos internos do país. Não é sempre que intervêm para ajudar e, sim, para defender os seus interesses e os de seus aliados.

O segundo tipo é de cooperação solidária. Nesta categoria, destaca-se Taiwan, com uma contribuição efetiva na agricultura, na construção de estradas, na transferência de tecnologia. É bom lembrar aqui a rodovia ligando o aeroporto à capital. E, ao lado da faculdade de medicina e do hospital que foram desocupados para abrigar as tropas, acabou de ser inaugurado um laboratório médico com a ajuda de Taiwan. Neste grupo se encontram também Cuba, contribuindo com a tecnologia da pesca, com o envio de profissionais da saúde e a formação de 750 jovens médicos haitianos, Venezuela e os países membros do Caricom.

O terceiro tipo é colaboracionista. Este grupo é composto pelos países membros da OEA e de alguns interessados da ONU. São executores da política do grupo intervencionista mediante as instituições regionais ou mundiais. O Haiti não faz parte da agenda política comum deles. Eles apóiam iniciativas da OEA e ONU. O Brasil se encontrava nesta categoria. Prova disso, o processo que o levou a assumir esta missão no Haiti. Com a liderança das tropas que lhe coube, passou para o grupo intervencionista, porém com uma atuação diferenciada mais próxima da posição dos países do Caricom. Seu papel para resolver a crise eleitoral de 2006 foi determinante.

Com a Venezuela, o Chile e a Argentina, esta tendência pode se confirmar, o que seria uma cooperação alternativa viável por ser respeitosa da soberania do país e solidária. Só este tipo de cooperação é válido. Seria um resgate, mesmo tardio, da dívida dos países latino-americanos para com o Haiti que levou a bandeira da liberdade e contribuiu para a conquista da independência de muitos.

No caso do Haiti, a cooperação internacional é muito mais uma brecha para que as potências interfiram no país. Em vez de ajudar, esta falsa cooperação contribuiu para enfraquecer o Estado. É um tipo de ajuda que gera dependência, não produz desenvolvimento e é fonte de corrupção. Sem essa falsa cooperação, a situação do país seria outra e, acredite quem quiser, seria melhor.

A pior forma de cooperação é a tutela, que foi muito cogitada. O representante especial do secretário geral da ONU, Juan Gabriel Valdés, numa palestra sobre o Haiti, em Madri, preparou a opinião pública para essa eventualidade, alegando que o Haiti é uma ameaça para a segurança do continente e do mundo.

Chegou a hora de dispensar o Haiti desse tipo de cooperação enganosa. O Haiti precisa de apoio internacional para fazer reparar uma injustiça ¿ a restituição pela França dos 60 milhões de ¿luíses dourados¿ que o país pagou como indenizações para o reconhecimento de sua independência. De 1827 a 1946, o país disponibilizou seus recursos para zerar essa dívida imoral. Para isso, a solidariedade dos povos amigos do Haiti é essencial.

Uma outra injustiça a ser corrigida é a dívida externa que, em 1986, era de US$750 milhões, enquanto a fortuna de Baby Doc era de US$900 milhões. Desde então, o país, com recursos internos, paga religiosamente os juros, ou seja, US$22 milhões ao ano. A dívida externa atual é de US$1,3 bilhão. Em 2005, apesar da situação desastrosa, a partir da arrecadação de impostos, o Haiti pagou US$52 milhões de juros. Portanto, perdoar a dívida do Haiti não será nenhum gesto de generosidade e, sim, fazer justiça a um povo que está pagando juros e dívidas de seus carrascos.

Precisamos de solidariedade dos povos que são nossos amigos naturais e não dos interesseiros. Isto é, uma verdadeira solidariedade sul-sul para substituir a cooperação norte-sul imposta pelos poderosos. É mais proveitosa e mais produtiva para o Haiti. Pode se realizar da base de apoio a iniciativas nacionais. Além da esfera governamental, podemos desenvolver redes de intercâmbio com instituições, organizações, sindicatos e demais. Seria a expressão de uma autêntica solidariedade de povos irmãos e amigos compartilhando muitas coisas em comum como histórias, culturas, lutas, resistências, conquistas, sonhos etc.

O outro rumo é uma parceria efetiva com conjunção ou complementação de interesses. O Haiti é um mercado potencial sobretudo nos próximos vinte anos. As riquezas naturais, especialmente do subsolo, ainda não foram exploradas. Uma parceria neste sentido será rentável para uns e proveitosa para outros.

Respeito à nossa soberania, não à tutela sob todas as formas, compensação para a injustiça da indenização à França e da dívida externa, verdadeira solidariedade sul-sul, intercâmbios proveitosos, parceria efetiva, produtiva e rentável são os parâmetros da cooperação que o Haiti precisa desenvolver com povos amigos e parceiros.

FIRTO RÉGIS é padre haitiano em missão na Pastoral Afro no Brasil.