Título: A NEGLIGÊNCIA DOS QUE ESTÃO NO PODER
Autor: SUSAN LEE e SANDRA CARVALHO
Fonte: O Globo, 07/04/2006, Opiniao, p. 7

Os soldados encerraram sua breve incursão pelas favelas do Rio de Janeiro. Levaram com eles os helicópteros e os tanques que por mais de uma semana permaneceram apontados contra algumas das comunidades mais carentes da cidade. São comunidades que abrigam as facções locais do tráfico, mas também milhares de crianças, mulheres e homens inocentes que por falta de opção são obrigados a viver próximos a elas.

As tropas voltam aos quartéis, a Polícia Militar retorna às ruas nos caveirões, as facções do tráfico retomam o trabalho e a cidade volta ao estado em que estava antes: concentração de violência nas comunidades pobres e desprotegidas, em grande parte controlada, para que não se alastre para os bairros de classe média, por uma força policial estadual compelida a operar além de sua capacidade. Enquanto isso, tanto o Exército quanto as autoridades declaram vitória, e os meios de comunicação continuam a citar pesquisas na Internet manifestando apoio à operação.

Será isso mesmo o que todo o Rio de Janeiro quer ou precisa? Pouco espaço foi dado àqueles que questionam a legalidade da operação e também a sua eficácia, ou o que ela representa no contexto da segurança pública hoje no Brasil. Aqueles que tentaram questionar ¿ os promotores federais cuja ação cautelar foi negada por um juiz federal, as mães nas favelas que tiveram de manter as crianças longe da escola por medo de balas perdidas e, principalmente, a família do menino de 15 anos morto por uma dessas balas ¿ tiveram suas vozes abafadas pelo barulho daqueles que alardeavam uma guerra contra a criminalidade.

Mas nem o Rio nem o Brasil estão em guerra. Não foi declarado estado de emergência pelo governo federal. Os 1.600 soldados não foram enviados para garantir a paz ou proteger a população, mas para salvar o orgulho do Exército. As operações, portanto, demonstram um flagrante colapso na provisão da segurança pública.

O fato de se ter permitido mais uma vez que o Exército fosse enviado às ruas expõe a extensão deste fracasso, e não uma solução. Sua presença temporária oferece pouco mais que uma ilusão de segurança, pois não está voltada às causas da violência e nem oferece um meio eficaz de proteger os que são mais vulneráveis a ela.

Mesmo assim, conveniências políticas levam algumas autoridades estaduais e federais a demonstrar aprovação por exibições de força da segurança armada ¿ quando seguidamente se ignoram os direitos dos cidadãos que respeitam a lei ¿ em vez de enfrentarem o profundo vácuo existente em matéria de políticas públicas, que faz com que os índices de homicídio no estado se mantenham constantemente altos.

Nem as autoridades estaduais ou federais sancionaram oficialmente esta operação ou mesmo contestaram seu embasamento legal. As tropas saíram às ruas com base em alguns mandados de busca emitidos pelo sistema de justiça militar. Esses mandados de busca, como tantos outros usados pelas forças policiais estaduais, parecem dar às autoridades o direito de revistar comunidades inteiras, desrespeitando com um único ato as garantias constitucionais e os direitos humanos de milhares de pessoas.

Enquanto isso, parece não ter havido qualquer tentativa de estabelecer regras sobre a execução desta operação, sobre as garantias constitucionais necessárias numa situação em que os soldados desempenham funções de segurança pública para a qual não estão preparados, ou sobre a transparência das cadeias de comando e responsabilidade.

Como era de esperar, os moradores da cidade, muitas vezes distanciados da realidade diária das favelas, mas igualmente amedrontados, exaustos por tantos anos de violência armada e carentes de um policiamento eficaz, apóiam essas demonstrações irregulares, porém dramáticas, de força por parte do Exército. Contudo, independentemente do apoio popular ou da retórica agressiva adotada pelas autoridades, as evidências demonstram que medidas de segurança repressivas ou discriminatórias não trouxeram a paz nem a segurança que a população tem o direito de esperar.

Na realidade, entre 1998 e 2004 as taxas de homicídio no Estado praticamente não se alteraram e o medo que impregna a cidade continuou. Nesse período, propostas de reformas na segurança pública foram abandonadas, somente para serem substituídas por uma política de ¿Força Máxima¿. Política que parece se basear primariamente em operações policiais cada vez mais militarizadas e nos homicídios praticados pela polícia. Ao mesmo tempo, policiais continuam sendo assassinados.

Está na hora de perceber que aqueles que perpetuam o mito de que a defesa dos direitos humanos é a defesa de bandidos conseguem somente obstruir a introdução de soluções genuínas para estes problemas. Inúmeras vezes foi demonstrado que somente os enfoques mais abrangentes da segurança humana, que combinam investimentos sociais direcionados com um policiamento inteligente e eficiente, que respeite os direitos humanos de todos, podem reduzir a violência de modo duradouro. As autoridades deveriam aprender com os projetos de segurança pública desenvolvidos em outras partes do país, que conseguiram reduzir drasticamente as taxas de homicídio sem declarar guerra aos seus cidadãos mais vulneráveis. Não se pode esperar que a polícia do Rio de Janeiro ou o Exército brasileiro consigam corrigir os efeitos da negligência ostentada há tanto tempo por aqueles que estão no poder.

SUSAN LEE é diretora do Programa das Américas da organização não-governamental Anistia Internacional. SANDRA CARVALHO é diretora-executiva da organização não-governamental Justiça Global.