Título: Entre a lei branca e a tradição
Autor: Elisabeth Orsini
Fonte: O Globo, 08/04/2006, Ela, p. 1

Os mapuches fazem sexo na lua cheia quando querem ter filhos homens

Sábado. Onze horas da manhã. Acompanhada da amiga Acacia Vital Brasil, Juana Paillalef passeia por uma feira livre em Ipanema. Curiosos com os trajes de Juana, os feirantes perguntam à amiga: ¿É portuguesinha?¿. E vão oferecendo para a excêntrica visitante pedaços de manga, caquis e figos.

Domingo. Meio-dia. Feira de Ipanema. Juana tem pouco dinheiro na bolsa mas vai comprando pequenos objetos, como os prendedores de cabelo feitos de coco, para que sua comunidade possa copiar.

¿ É incrível, ela só pensa no seu povo ¿ diz a amiga.

No apartamento de Acacia, em Ipanema, onde estava hospedada, Juana pede alguns minutos para atender à reportagem. Está no quarto vestindo a indumentária da qual nunca se separa. Quando entra na sala, sua imagem causa impacto. Parece uma rainha.

Primeira mulher que exerce o cargo de ¿lonko¿, o que significa na cultura mapuche condutora política da proteção dos direitos e deveres do seu povo ¿ função geralmente ocupada por homens ¿ ela fala sobre sua luta. Diz que as comunidades mapuches têm sido as mais afetadas pela intervenção das empresas madeireiras nos bosques nativos, nas águas e na terra, elementos vitais na sua cultura. E que sua comunidade tem sido alvo de assassinatos, prisões arbitrárias e tortura.

Espancada pela polícia

Em fevereiro, junto com sua irmã Ana Luísa, Juana foi considerada culpada pelo delito de ¿desordens na vida pública¿ e ¿ameaças a carabineiros (força policial chilena) em serviço¿. As penas foram atribuídas a elas depois de um enfrentamento com as forças de segurança, ano passado, quando sua comunidade fazia uma manifestação contra a construção de uma estrada privada que corta a comunidade rural mapuche. Juana e sua irmã foram espancadas, expulsas de suas casas e presas. Em represália, a polícia já queimou três vezes a casa de Juana e o ateliê da comunidade.

¿ Perdemos o ateliê, fonte de nossa subsistência, no qual produzimos mantas, casacos, camisetas e jóias de prata. Estamos numa pobreza horrível ¿ conta Juana, que usa a internet nas localidades de Los Laureles ou em Cunco, no estado de Temuco (comunidadguanpaillalef@yahoo.com).

Quando conheceu Juana, no Fórum Social Mundial de 2003, em Porto Alegre, a psicóloga Vera Vital Brasil ficou impressionada com a dignidade daquela mulher usando trajes que lembravam os das indígenas guatemaltecas.

¿ Ela disse que seu nome iria ganhar o mundo. Hoje, três anos depois, sua luta já está integrada ao movimento internacional de apoio aos mapuches. Juana conseguiu ser um instrumento de divulgação da luta de seu povo ¿ conta Vera, que pertence ao grupo Tortura Nunca Mais.

Enquanto escuta as palavras da amiga, Juana repousa seus olhos penetrantes nos documentos que registram as provações pelas quais seu povo tem passado. Pouco a pouco, ela deixa chegar a Juana mulher. Um pouco sem jeito, a princípio, mas a cada risada mais à vontade. Conversa sobre o trabalho no ateliê em que os mapuches confeccionam camisetas, gorros, casacos, cachecóis, bijuterias e conta que, atualmente, seus filhos estão impedidos de estudar por falta da ajuda financeira que recebia com o trabalho da oficina.

¿ O governo não tem vontade de reativar o ateliê porque não trabalhamos com cartão de crédito, não fazemos parte de sua máquina ¿ conta, rindo, esta mulher que estudou contabilidade.

Juana exibe suas roupas com orgulho. Explica cada detalhe. Os brincos simbolizam o cosmos. E mostra como vestir o ¿chamal¿, traje típico feminino tecido em forma de retângulo.

¿ O ¿chamal¿ sempre é preto ou branco. As meninas de 12 anos só usam o branco. As viúvas deixam o lado esquerdo solto; as solteiras, o lado direito; as casadas, deixam os dois lados presos. A polícia, quando nos prende, arranca o ¿chamal¿ e ficamos completamente nuas. É o máximo de humilhação que uma mulher pode sofrer ¿ diz Juana.

Em algumas ocasiões as mulheres usam blusas embaixo do ¿chamal¿ nas cores do arco-íris. Para os mapuches, as cores têm significados fortes: vermelho é o sangue derramado pelos antepassados; verde, a conexão com a natureza; branco, a transparência; amarelo, o calor que permite a reprodução da natureza; azul, o universo, que guarda a sabedoria. A faixa na cintura estampa o abecedário, a ciência e a filosofia.

Os mapuches são cuidadosos com a alimentação. Comem trigo, cevada, aveia, mate, papas, legumes, verduras, frutas e carnes defumadas de javali, peixe, boi, perdizes e galinhas.

¿ Nunca comemos sal, nem açúcar, só mel natural, o que deixa a pele bonita. Quando as adolescentes têm espinhas, fazemos um preparado que limpa completamente a pele.

Depois do desjejum, eles nadam, fazem visitas ou vão trabalhar nas oficinas das comunidades próximas já que a deles foi queimada.

¿ Até a oitava série os mapuches estudam em Las Laurelles, depois disso em Temuco ¿ explica Juana.

Casada pela segunda vez com Antonio Cadin (o primeiro marido morreu), seis filhos, dois deles estudando direito, três netos, ela diz, orgulhosa, que os mapuches se casam para toda a vida:

¿ Meu marido é pequeno mas um grande homem e me apóia muito.

Mas, quando uma separação é inevitável, coisa rara na sua cultura, ela diz que a comunidade é ¿acolhedora¿ e até ajuda a mulher a encontrar outro parceiro.

¿ Mas desde que sejam jovens pois o novo marido vai ter que alimentar uma nova família que já tem outros membros.

Juana explica que o casamento é por linhagem.

¿ Os lonkos se casam com lonkos; os maches se casam com maches.

Os maches são os pajés, que têm habilidade para detectar doenças e poder de cura.

Prática sexual `maravilhosa¿

Quando um mapuche de uma linhagem se interessa por uma mulher de outra linhagem, ele a rapta e envia um porta-voz de sua comunidade, o ¿werken¿.

¿ Este porta-voz anuncia à família da mulher o relacionamento e faz a negociação até o dia do casamento. Enquanto isso acontece, os noivos ficam transando. Só depois é que acontece o casamento, que dura quatro dias. Mas essa festa não é só comemoração. Enquanto ela acontece, os pais orientam os filhos para a vida sexual e para a educação das crianças que vão nascer.

No fim da festa, o noivo coloca a mulher na garupa de um cavalo e sobe com ela a montanha. Lá em cima, a família do noivo tira toda a roupa da mulher e a veste com as roupas da nova tribo. Juana explica que, quando as mulheres mapuches querem conceber filhos homens, fazem sexo na lua cheia. Quando querem gerar mulheres, na lua crescente.

¿ Quando o sexo é feito entre duas luas, o que não é recomendado, podem nascer homossexuais ou lésbicas. Por isso não existe a prática homossexual entre nós. Quando isso acontece, ela se expressa em outras cidades ¿ explica Juana lembrando que os mapuches conhecem uma planta que esteriliza a mulher durante três anos. ¿ Nossas mulheres tomam o preparado quando querem usufruir só o prazer do sexo.

A prática sexual entre eles é, segundo Juana, ¿maravilhosa¿.

¿ Amamos livremente, nos rios, nas matas, mas não na frente de toda a comunidade. Se temos beijo na boca? É claro que temos. É muito natural e prazeroso também ¿ diz Juana, sorrindo.