Título: A GRANDE POLÍTICA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 08/04/2006, O País, p. 4

O acirramento da luta política está colocando no centro das discussões o preconceito de classes, que parecia ter sido superado como mote eleitoral com a chegada do líder operário Lula à Presidência da República, em uma das mais civilizadas transições de poder já acontecidas no país. Mas o preconceito vem dos dois lados.

Tanto os sindicalistas chegados ao poder, a começar pelo próprio Lula, usam sua condição social original para se identificar como os defensores dos excluídos, colocando seus adversários como os verdadeiros algozes do povo, como a oposição usa essa mesma origem social dos novos poderosos como explicação para o evidente deslumbramento e os escândalos de corrupção que vão sendo desvendados.

Também nesse nível a disputa está polarizada entre presidente Lula e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que se mantém como paradigma do PT no poder. O sonho do ministro da coordenação política, Tarso Genro, de ver FH disputando contra Lula a presidência pela terceira vez ¿ Lula perdeu as duas primeiras no primeiro turno ¿ dificilmente se concretizará.

Mas as palavras de Fernando Henrique continuam sendo motivo de debate político acalorado, como se suas críticas doessem mais em Lula do que a de outros, o que poderia ser um reconhecimento do poder que o ex-presidente ainda tem, ou a revelação da mágoa de um antigo aliado.

O fato é que tudo o que o ex-presidente fala se torna um cavalo de batalha para o governo, ainda mais quando escorrega como escorregou na quarta-feira no programa do Jô, da TV Globo. Fazendo uma análise dos últimos acontecimentos, o sociólogo pecou quando saiu do geral para o especifico, e atribuiu ser mais fácil os pobres ¿que chegam lá em cima¿ se deslumbrarem com o poder.

É claro que o ex-presidente estava se referindo aos petistas envolvidos nos escândalos de corrupção, até mesmo ao próprio presidente Lula, cujo gosto pela ostentação dos luxos possibilitados pelo cargo já se tornou conhecido. Mas generalizou, permitindo que os governistas o ataquem como elitista adversário dos pobres. Usou a palavra errada, como já usara uma vez quando estava no governo, chamando os aposentados de vagabundos.

No livro ¿A arte da Política - A História que vivi¿, o ex-presidente relata esse episódio, admitindo que ia se referir aos marajás do serviço público, que se aposentavam antes dos 50 anos com altos salários, e mudou a palavra na última hora para não ser comparado a Collor, o caçador de marajás de triste memória. Deu no que deu. O ex-presidente rejeita a fama de político de punhos de renda que a oposição lhe pespega, e recorda sua trajetória de sociólogo sempre ligado ao estudo e à defesa de minorias.

Como demonstração de que não tem objeção a hábitos populares, afirma, não sem um tom irônico, que não foi nenhum esforço comer buchada de bode na campanha eleitoral ¿ que compara às tripes à la mode de Caen ¿ e se declara ¿louco por um sonho de padaria¿.

Entre episódios pitorescos e bastidores do poder nos últimos 30 anos, o ex-presidente mostra que teve bons professores e aprendeu rápido, embora tenha entrado na política partidária já com mais de 50 anos. Quando se discutia quem seria o candidato das oposições no Colégio Eleitoral, Tancredo, que disputava com Ulysses a indicação, puxou-o pelo braço e disse: ¿Prepare-se que chegou sua hora¿. FH notou naquele momento que Tancredo queria ser o candidato, pois ele, um político ainda verde e que chegara ao Senado como suplente, não poderia ser o escolhido.

Um das revelações fundamentais para o entendimento da política do país está numa pequena referência que faz, à guisa de conclusão, sobre o que esperava do processo de transição de poder:

¿Depois de haver construído uma transição de governo que abriu espaço para uma convergência em benefício do país, colhemos novamente dos que se arrogavam ser a expressão máxima das virtudes públicas e portadores do futuro a pecha de `adversários¿, quando não de `inimigos¿. (...) não teria sido possível, e mais construtivo, ter-se aberto um diálogo nacional, em vez de colher apoios no balcão da indignidade com pagamento à vista?¿

A pergunta do ex-presidente indica claramente pela primeira vez, que ao fazer a transição imaginava que houvesse espaço para um governo de coalizão de PT-PSDB que desse continuidade ao que chama de esforço de modernização do Estado brasileiro.

Essa união esteve na cogitação do próprio Lula e de alguns ministros do ¿núcleo duro¿ do governo petista, mas acabou não se concretizando principalmente devido à luta política paulista, centro gerador tanto do PT quanto do PSDB, e onde estão seus principais líderes, disputando os mesmos espaços, como é o caso agora dos ex-prefeitos José Serra e Marta Suplicy, em vias de se enfrentarem novamente pelo governo do estado.

A preocupação com a História, cujo juízo, que é o que conta, seus personagens não assistirão, é permanente. FH enfrenta com galhardia todas as acusações que ainda pesam contra ele, da suposta compra de votos para a reeleição ¿ que ele nega ¿ até as privatizações, passando por detalhes, por vezes emocionantes como numa boa ficção de suspense, das crises econômicas que enfrentou.

Para quem é tido como vaidoso incondicional, até que Fernando Henrique exercita a humildade, a começar por declarar não saber se seu governo representou um início ou um interregno. Mas, inspirado num trabalho do sociólogo alemão Max Weber, ¿A Política como Vocação¿, Fernando Henrique conclui que ¿valeu o esforço¿. O verdadeiro político, diz ele se baseando em Weber, mesmo que não alcance aquilo a que se propôs, e que todos se voltem contra ele, encontrará forças para dizer que, ¿apesar de tudo¿ fez o que pôde. E Fernando Henrique mostra nesse livro que é, sem dúvida, um verdadeiro político, dos grandes que o país já teve.