Título: MENTIRA, CINISMO E CARISMA
Autor: CARLOS ALBERTO DI FRANCO
Fonte: O Globo, 10/04/2006, Opinião, p. 7

Ainevitável demissão de Antonio Palocci, o mais talentoso ator da trupe lulista, escancarou o tumor que corrói o governo do presidente Lula: a mentira. E o relatório final da CPMI dos Correios, documento razoável, não obstante o malabarismo semântico para ocultar a nudez do rei, acabou revelando uma metástase recidiva: o cinismo.

O mais recente capítulo da novela nauseante em que se transformou o governo do presidente Lula, sepulcro da esperança sincera de milhões de brasileiros, foi a desproporcionada guerrilha do ministro contra o caseiro. Mas o que assustou no episódio, caro leitor, não foi apenas a prepotência dos poderosos, mas a tomada de consciência, inequívoca e brutal, de que a democracia brasileira e suas instituições estão sendo desmoralizadas por inúmeras autoridades.

Tenho defendido, sistematicamente, a inauguração do Placar da Corrupção. Trata-se de um serviço público que a imprensa pode e deve prestar aos seus leitores. Vamos lá, portanto. A CPMI dos Correios pediu, no total, o indiciamento de 122 pessoas, entre elas ex-ministros, ex-dirigentes do PT e de estatais e 20 parlamentares. O relatório final indiciou, entre outros, os seguintes homens de confiança e amigos do presidente da República:

Delúbio Soares, ex-tesoureiro do PT. Acusações: falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, crime eleitoral e peculato.

José Genoino, ex-presidente do PT. Acusações: falsidade ideológica, lavagem de dinheiro, corrupção ativa e crime eleitoral.

José Dirceu, ex-ministro. Acusação: corrupção ativa.

Luiz Gushiken, ex-ministro. Acusações: tráfico de influência e corrupção ativa.

Silvio Pereira, ex-secretário do PT. Acusação: tráfico de influência.

Henrique Pizzolato, ex-diretor do Banco do Brasil. Acusações: falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e peculato.

Cássio Casseb, ex-presidente do Banco do Brasil. Acusação: condescendência criminosa.

Fico por aqui, pois meu espaço é limitado. O último elo da corrente criminosa foi, talvez, o mais espantoso.

Após uma surrealista sucessão de mentiras, o ex-presidente da Caixa Econômica Federal, Jorge Mattoso, disse à Polícia Federal que solicitou os extratos com dados bancários do caseiro Francenildo Costa e, de posse dos papéis, entregou-os ao ex-ministro Palocci. A coisa foi pior. O próprio Palocci determinou a quebra do sigilo. Resumo da ópera: o ministro da Fazenda e o presidente da Caixa, uma instituição com notável patrimônio de credibilidade, cometeram crime de violação do sigilo de um correntista. Agora, o imbróglio se aproxima do gabinete do ministro da Justiça.

Mas a tragédia não se esgota na mentira. A síndrome de pinóquio desemboca, dramaticamente, na patologia do cinismo. Mattoso, por exemplo, afirmou que agiu ¿nos estritos limites da legalidade¿ ao violar o sigilo bancário do caseiro. Já Palocci, campeão do troféu caradura, afirmou, em sua despedida, que se solicitou o seu ¿afastamento definitivo¿ do Ministério da Fazenda foi para contribuir para a pacificação do país ¿frente ao quadro conflituoso e tenso¿.

E o presidente Lula? Sua Excelência, invariavelmente, percorre o mesmo itinerário. Nada sabe e nada vê. Acuado pela força irresistível dos fatos, declara-se traído. E, num recorrente jogo verbal, finge desconhecer a gravidade dos episódios. Crime, na surpreendente lógica presidencial, é erro. O curioso silogismo de Lula é gravíssimo, pois está esgarçando a consciência ética da sociedade. O exemplo que vem de cima sempre tem conseqüências. Para o bem ou para o mal. Na verdade, a opção do presidente, triste e lamentável, foi feita há meses em Paris. Até então, Lula negava o óbvio. Perguntado sobre o caixa 2, disse que o PT só tinha feito o que era feito sistematicamente no Brasil. Falando claro: o presidente da República renunciou ao seu papel constitucional, avalizou a prática do crime e, no mínimo, foi leniente.

O presidente está só. O núcleo duro do governo desabou fustigado por graves acusações de corrupção. Seus amigos e homens de confiança foram caindo. O presidente confia no seu inegável carisma para construir um lulismo sem os destroços do PT. Só lhe falta perceber uma coisa: o sonho acabou. A saga fascinante do operário não será tisnada pela elite. Seu contraponto, misterioso paradoxo, será a voz de um simples caseiro.

CARLOS ALBERTO DI FRANCO é diretor do Master em Jornalismo. E-mail: difranco@ceu.org.br.