Título: FUTEBOL É ALEGORIA DA INTEGRAÇÃO RACIAL¿
Autor: Dorrit Harazin
Fonte: O Globo, 09/04/2006, O País, p. 16

`Os atletas negros sempre pagaram o tributo do silêncio e da negação¿, diz ex-secretário

Mestre em direito constitucional, doutor em direito processual penal e secretário de Justiça de São Paulo até dia 31 de março, o advogado Hédio Silva Jr. monitorou com atenção dobrada a denúncia do juiz de futebol José de Andrade contra o coronel da PM Antonio Chiari. Para ele, é um caso emblemático. No último dia à frente da secretaria, o advogado falou ao GLOBO sobre preconceito e lei, futebol e o mito brasileiro de integração racial. Além da autoridade acadêmica e experiência profissional, tem vivência no tema. Foi auxiliar de pedreiro, balconista, atendente em banca de jornal e o que mais aparecia, para conseguir chegar onde chegou. Cidadão pleno? Poucas semanas atrás, ainda como secretário em missão oficial, foi barrado numa cerimônia de posse em Brasília.

Por que o caso Andrade-Chiari é emblemático?

HÉDIO SILVA JUNIOR: Porque de um lado temos a figura de um coronel da PM que, pela própria função pública que exercia, deveria ter tido um treinamento para lidar com a diversidade racial que caracteriza a sociedade brasileira. Emblemático também porque o rapaz, ao contrário do que acontece com os anônimos, não se dispôs a ficar calado e se insurgiu contra o fato. E emblemático, sobretudo, porque o futebol tem servido historicamente de alegoria à integração racial brasileira. No Brasil as pessoas podem crescer e morrer sem ter a oportunidade de poder ter uma reflexão séria sobre as questões raciais.

Qual o papel do futebol nesta questão?

SILVA JUNIOR: É um papel dúbio. Apesar de todos os percalços do ingresso do negro no futebol, o esporte foi sem dúvida o espaço histórico de sua projeção e ascensão social. Por outro lado, o futebol sempre foi exibido pelo setor conservador como certificado da integração racial brasileira. Foi e continua sendo um poderoso argumento contra o reconhecimento da gravidade da problemática racial. A inserção do negro no futebol acabou exibida como atestado de democracia, com o discurso mistificador se alimentando da diversidade em campo.

Qual o limite do futebol como espaço de ascensão social?

SILVA JUNIOR: O limite está dado pela habilidade física. Num país com futebol de representação negra tão vigorosa, não há técnicos, comentaristas, jornalistas especializados ou dirigentes negros. Tostão tornou-se um analista de destaque. Quantas outras figuras que brilharam e foram reconhecidas internacionalmente como grandes atletas não poderiam ser técnicos ou comentaristas? A atividade intelectual que gira em torno do futebol não faz parte da inserção. Os limites no futebol estão dados pelos limites que o racismo impõe à ascensão do negro na sociedade como um todo.

O senhor detecta alguma mudança neste quadro?

SILVA JUNIOR: Os atletas negros ¿ inclusive estrelas como Pelé ¿ sempre pagaram o tributo do silêncio e da negação da problemática racial. É um tributo para poder ocupar espaço, ser reconhecido, não ter a carreira prejudicada. Quando o jogador Caju apareceu nos anos 80 usando cabelo black-power, foi tachado de mascarado.

Mas hoje temos o caso Grafite, o caso José de Andrade, a Fifa e o Parlamento Europeu regulamentando as penalidades por racismo. Há avanço?

SILVA JUNIOR: Lembro que fiquei emocionado ao ler uma entrevista da ginasta Daiane dos Santos à ¿Folha de S.Paulo¿, na qual ela dizia coisas como ¿sou negra, o Brasil é um país racista, eu luto contra o racismo e vou colocar o chorinho na minha apresentação¿. Pensei: ¿Onde essa moça aprendeu isso? Que discurso chegou a ela? De que modo esse discurso chegou a ela?¿ Lamentavelmente, o ator social que amplia a consciência do racismo e que exibe esse discurso, ainda é, quase isoladamente, o movimento negro.

O senhor sofreu recente discriminação racial em Brasília. Como foi o episódio?

SILVA JUNIOR: Foi na posse do novo ministro do Supremo, Enrique Lewandowski. Eu acompanhava o governador Geraldo Alckmin e o vice Cláudio Lembo. Ao chegarmos para a sessão solene, passa o governador. Em seguida, o vice. Na minha vez o guarda não tem dúvida: ¿Este é segurança¿, diz ele, e me barra.

O que o senhor fez?

SILVA JUNIOR: O guarda teve de engolir a minha entrada porque o ajudante de ordens voltou para me levar ao lugar destinado às autoridades.

Não teria sido particularmente emblemático o senhor denunciar o fato ali, em pleno STF?

SILVA JUNIOR: Não fosse o contexto da posse de um ministro amigo íntimo ¿ não só tenho relação de amizade de muitos anos, como ele é um juiz e jurista que historicamente se preocupa com a temática da questão racial ¿ uma denúncia ali mesmo teria sido bastante pedagógica. Mas considerei que se tratava de uma posse, de uma festa. Se tivesse me sentido objetivamente ofendido teria tido uma reação. O episódio talvez merecesse esse tratamento.

Para a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos qual foi a importância de ter um titular com seu perfil?

SILVA JUNIOR: No plano simbólico, penso que foi educativo. Uma secretaria que já teve como tradição ser ocupada por representantes de famílias quatrocentonas de São Paulo, ter alguém com minha trajetória, minha origem, minha história, sinaliza que os negros podem ser qualquer coisa na vida, além de jogadores de futebol ou cantores. E haverá continuidade. Minha substituta é uma profissional qualificadíssima, e também negra. (Dorrit Harazim)