Título: UM NOVO LAR PARA OS ÓRFÃOS DO TRÁFICO
Autor: Vera Araujo
Fonte: O Globo, 09/04/2006, Rio, p. 17

Europeus, principalmente italianos e franceses, adotam crianças vítimas da violência no Rio

W., de 8 anos, não se recorda do rosto do pai, mas lembra quando atravessou a mata na escuridão da favela onde morava na Zona Norte, durante uma incursão policial, servindo de escudo para quem tinha a obrigação de protegê-lo. O menino sabe ainda que passou frio e fome por dois dias, tempo em que ficou escondido com o pai num buraco. Esses fragmentos de memória, apesar de dolorosos, estão sendo registrados em vídeo pelo casal de franceses Fabrice e Anna Vallot. Eles fazem questão de preservar o passado dos três irmãos que adotaram no Brasil, em 2002.

São crianças com o histórico de W. que vêm sendo adotadas por europeus, uma vez que só eles aceitam criar os órfãos da guerra do tráfico no Rio. A adoção internacional vem sendo apontada pelo coordenador da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), desembargador Thiago Ribas Filho, como uma das soluções para dar uma família aos filhos de traficantes.

A curiosidade de Fabrice pelo Brasil começou aos 12 anos, quando ouviu a música ¿Águas de março¿, de Tom Jobim. Como a mulher não podia engravidar, eles decidiram adotar três crianças brasileiras.

¿ É difícil fugir do passado. As crianças sabem que são filhas de um traficante famoso. Elas são espertas. Muito mais do que as francesas. No início, W. falava até em matar o pai. Hoje ele já tirou essa idéia da cabeça. Elas aprendem tudo muito rápido. W. adora jogar xadrez comigo. Só fico triste porque elas já não falam mais quase nada em português ¿ lamenta Fabrice.

Segundo o desembargador Thiago Ribas Filho, que habilita os estrangeiros a efetivarem as adoções, são os europeus, principalmente franceses e italianos, que ficam com as crianças rejeitadas pelos brasileiros.

¿ O segredo da adoção é que os adotantes não sejam enganados, que eles saibam quem é a criança que estão levando. Se a gente tem algum menor que já passou por um trauma em decorrência de violência familiar por causa das drogas, nós contamos a verdade. A criança é acompanhada por psicólogas e assistentes sociais. Infelizmente, os brasileiros ainda têm muitos preconceitos. Quando uma criança é adotada por um estrangeiro, é como se ela tivesse ganhado na loteria.

Outra vantagem da adoção internacional indicada pelo desembargador é o fato de os estrangeiros levarem grupos de irmãos. Na maioria das vezes, as adoções são casadas, ou seja, é possível que seis irmãos sejam adotados por três casais de franceses ou italianos, por exemplo, mantendo os laços familiares.

¿ Uma das qualidades dos estrangeiros é que eles estão abertos a fazer adoções tardias (de crianças de mais de 5 anos). Com o nosso incentivo, costumam adotar grupos grandes. Agora mesmo, em Petrópolis, temos o caso de seis irmãos destinados a três casais da mesma cidade, divididos dois a dois. São sete irmãos, mas o mais velho, de 11 anos, não quer ser adotado por estrangeiros. A escadinha de 2 a 9 anos já está sendo adotada ¿ conta o magistrado.

No ano passado foram nove grupos de irmãos indicados para adoção internacional no Rio, num total de 21 crianças, sendo que 90% eram filhos de pais traficantes ou mães usuárias de drogas.

Entre as crianças, as histórias se parecem. Além de terem pais atuando no tráfico de alguma favela, muitas sofreram violência doméstica, incluindo abuso sexual, e têm carência de afeto. Para escapar dessa realidade, a fuga para as ruas da Zona Sul é muitas vezes a solução adotada.

Foi o caso de X., de 12 anos. Filha de um bandido, já morto, que chefiava o tráfico numa favela e de uma usuária de drogas, ela fugiu da escola, de casa, da favela, largou a mãe e, por último, jogou fora, há um ano, a oportunidade de ser adotada por um casal de europeus. Nas ruas de Copacabana, passou a usar drogas e a se prostituir. Segundo colegas de X., ela está apaixonada por um menor infrator, de 17 anos, que cumpre medida sócio-educativa no Instituto Padre Severino, na Ilha do Governador, por roubo.

Os irmãos da menor tiveram outra sorte. Uma menina de 3 anos foi adotada pelo casal italiano rejeitado por X, o empresário Mauro Bracci e a professora Marisa Carniato. Os outros dois irmãos, de 4 e 7 anos, ficaram com o cardiologista Luca Oselladore e a pedagoga Lauretta Oselladore, também italianos. No último relatório, as famílias informaram que o mais difícil era controlar a ansiedade das crianças quando elas se encontravam. Marisa até hoje não se conforma com a desistência de X. e lembra que a menina sempre perguntava por que o casal queria adotá-la.

Atualmente, X. está passando por outro processo de adaptação, com um parente encontrado pela promotora Daniela Vasconcellos, da 8ª Promotoria da Infância e da Juventude da capital.

¿ A adoção internacional é uma alternativa válida, pois abrange crianças que têm histórico de tráfico na família ¿ diz a promotora, acrescentando que o número de brasileiros que adotam crianças mais velhas está aumentando.

Em janeiro do ano passado, durante o seu processo de adoção, X. chegou a se despedir da mãe numa carta. Por ser analfabeta, pediu a uma colega de abrigo que a escrevesse.

¿ Botei assim: ¿Mãe, me desculpa. Agora eu vou ter uma nova vida. Estou partindo, me desculpa por deixá-la sozinha, mas foi você mesma quem pediu. Quero que você saia desta vida e procure um homem que trabalhe, não seja traficante. Você tem que parar de usar drogas. Sai desta vida, mãe! Sabe por quê? Porque este tipo de vida não vale nada¿.