Título: O ENIGMA
Autor: Merval Pereira
Fonte: O Globo, 11/04/2006, O País, p. 4

Como explicar a permanência de Lula como favorito dos eleitores, quando nada menos que 79% dos entrevistados pela última pesquisa Datafolha acham que existe corrupção no governo e, desses, 37% atribuem ¿muita responsabilidade¿ a Lula e 46% acham que Lula tem pelo menos ¿um pouco de responsabilidade¿? Uma primeira explicação pode ser a desinformação sobre os últimos acontecimentos.

Embora 66% dos brasileiros tenham tomado conhecimento da saída de Antonio Palocci do Ministério da Fazenda, e 67% da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, uma boa parte da população está desinformada sobre esses novos fatos.

Uma boa indicação das conseqüências dessa desinformação é o dado que mostra que a preferência por Lula decresce à medida que os eleitores se consideram bem informados sobre os acontecimentos: 44% dos entrevistados que não tomaram conhecimento da demissão de Palocci votam em Lula, assim como 46% dos que não souberam da quebra do sigilo do caseiro.

Já entre os que souberam, a margem a favor de Lula diminui. Entre os que se dizem ¿bem informados¿ da saída de Palocci, 33% votam em Lula, 30% em Alckmin. E dos ¿bem informados¿ da quebra de sigilo do caseiro, 35% são Lula, 28% votam em Alckmin.

Outra explicação pode ser o ceticismo que teria tomado conta do eleitorado diante da troca de acusações entre os candidatos, um desencanto momentâneo com a política, que seria superado no calor da campanha eleitoral. É bom lembrar que na primeira onda de acusações, a popularidade do presidente Lula demorou a se deteriorar.

E até que ponto a chamada Bolsa-Miami, maneira irreverente de identificar os efeitos do dólar barato na boa vontade da classe média brasileira com Lula, que o colunista Ancelmo Gois registrou e eu passei a usar nas análises políticas, tem parte nessa manutenção da popularidade do presidente?

O economista Edmar Bacha acha que, mais que a possibilidade de viagens internacionais ou compra de importados, o dólar baixo tem efeito mesmo é no custo de vida. O dólar baixo reduz os preços internos dos bens exportados e importados pelo Brasil, bem como exerce efeito baixista sobre os preços dos produtos domésticos substitutos de importação, ressalta Bacha.

Com base no consumo total das famílias em 2004, último ano disponível nas contas nacionais do IBGE, de R$975 bilhões, Bacha chegou à conclusão de que o consumo interno de bens cujos preços são fortemente afetados pelo câmbio representa R$146 bilhões, 13 vezes mais do que os gastos de viagens internacionais, de R$11 bilhões.

Todas essas questões influem certamente na decisão de voto, mas pode estar ocorrendo um movimento mais amplo e mais profundo no eleitorado brasileiro, que encontra semelhança no que acontece em países como o Peru, o Equador, a Bolívia e a Venezuela, onde populações marginalizadas e afastadas dos mínimos direitos de cidadania ¿ saúde, educação, emprego, perspectiva de futuro ¿ reinventam valores, não identificam mais os partidos como canais de expressão de suas reivindicações, e mantêm um contato direto com o líder carismático que consideram representá-los.

E se importam mais com a solução de questões materiais imediatas do que com questões morais, sem entender que o assistencialismo não leva à redenção de seus problemas, ao contrário. Por isso, também, os eleitores de Garotinho têm tamanha intersecção com os de Lula, podendo servir tanto como instrumento para levar o candidato do PSDB ao segundo turno, como para levar o próprio Garotinho a ultrapassá-lo.

O professor de História Contemporânea da UFRJ Francisco Carlos Teixeira identifica esse movimento com a constatação de que ¿bem ao contrário do que a avalanche (neo)liberal assegurava nos anos 90, as `receitas¿ da felicidade liberal não garantiram, de forma alguma, bem-estar e segurança para milhões e milhões de pessoas em todo o mundo¿.

Segundo ele, ¿para as grandes massas populares, depauperadas com a crise do endividamento e o esgotamento do modelo de industrialização por substituição de exportações¿, a luta pela volta do estado de direito na redemocratização de países da América do Sul ¿deveria representar, acima de tudo, ganhos bastante concretos, tais como empregos (de qualidade) e segurança pessoal¿.

Isso não aconteceu, pelo menos na intensidade necessária, e essa multidão de despossuídos passou a não ver na democracia representativa liberal uma solução para seus problemas cotidianos, passando a aceitar lideranças carismáticas como Chávez, Ollanta Humala, Evo Morales e mesmo Lula, sem intermediações partidárias.

Lula caminharia para a reeleição nessas condições, cada vez mais isolado e apoiado no seu carisma pessoal, o que aumenta o perigo de um segundo mandato baseado na chamada ¿democracia das ruas¿, tão em voga em alguns países.

O caso do Peru é emblemático. Os resultados macroeconômicos alcançados pela administração de Alejandro Toledo são formidáveis: o PIB cresceu 6,7% em 2005, pelo terceiro ano consecutivo: um crescimento de 5,7% no ano anterior, e a perspectiva para este ano é de outros 5,8%. A inflação foi de 1,5%, as exportações do Peru cresceram quase 150%, o risco-país é dos mais baixos do continente, e as dívidas externa e interna foram reduzidas em relação ao PIB.

No entanto, Toledo é considerado um ¿estelionato eleitoral¿ pela imensa população de excluídos, que não teve nenhum tipo de programa assistencialista que permitisse ao governo ganhar tempo no projeto de recuperação do país. Como Lula mantém a mesma política econômica acusada de neoliberal que seria a razão da revolta dos despossuídos, estaria ele, com os programas assistencialistas, apenas ganhando tempo e garantindo a estabilidade social ?