Título: POLÍTICA SOCIAL DE ALTO RISCO
Autor: PETER FRY E YVONNE MAGGIE
Fonte: O Globo, 11/04/2006, Opiniao, p. 7

ACâmara dos Deputados votará nas próximas semanas o projeto de lei 73/99 que obriga todas as instituições federais de ensino superior a adotar 50% de cotas ou reserva de vagas para estudantes de escolas públicas e dentro dessa cota um percentual de estudantes negros (pretos e pardos na classificação do IBGE), indígenas e outras minorias. Estas cotas serão aplicadas linearmente em todos os cursos das universidades federais.

Por que essa medida é polêmica? Uns dizem que vai reduzir a qualidade de ensino e pesquisa das universidades federais. Pode ser. Mas o que queríamos sugerir é que esta lei traz conseqüências que vão muito além das portas das universidades. Ela implica um projeto radicalmente novo de nação. A lei, se aprovada, irá instituir, no âmbito federal, o negro como figura jurídica, o que já ocorreu em 2001 no Estado do Rio de Janeiro, com a aprovação da lei de reserva de vagas para as universidades estaduais votada por aclamação pela Assembléia Legislativa.

O que significa instituir o negro como entidade jurídica? Significa uma mudança radical no nosso estatuto jurídico republicano, que, até agora, ignora ¿raça¿ e pune o racismo como crime inafiançável e imprescritível como os demais crimes hediondos. Se passar essa lei, os cidadãos serão divididos em duas ¿raças¿ com direitos distintos de acordo com a sua pertença a uma ou outra dessas duas categorias. A política de cotas raciais, como vem sendo denominada, institui, portanto, uma sociedade dividida entre ¿brancos¿ e ¿negros¿. Em outros lugares do mundo esse tipo de engenharia social trouxe mais dor do que alívio para os problemas a que visava solucionar.

Há uns que dizem que quem é contra as cotas apenas defende os seus privilégios. A política de cotas raciais em nada vai afetar as elites endinheiradas do país. Estas continuarão mandando os seus rebentos para os cursos pré-vestibulares mais badalados, e encaminharão a sua prole menos competitiva para universidades no Primeiro Mundo. As cotas são destinadas para as camadas médias baixas, que só agora, com a expansão do ensino de segundo grau, podem sonhar em ver os seus filhos entrarem na universidade. Mas é justamente essa classe média ascendente aquela em que gentes de todas as cores convivem nas mesmas famílias e vizinhanças. Queremos cindir esse universo social em duas ¿raças¿?

Dirão os proponentes dessa política que o país já é dividido na prática, na realidade, no dia-a-dia. Mas é justamente contra isso que o anti-racista deve lutar. A luta contra o racismo deve ser prioritária, dever de todo o cidadão. No entanto, o remédio que está sendo ofertado em uma bandeja de prata é um remédio barato e arriscado, pois o seu custo social pode ser muito alto. É uma política de curto prazo cujas conseqüências serão sentidas no longo prazo.

Outros defensores das cotas acusam aqueles que têm dúvidas de racistas, evidentemente no intuito de calar a crítica. Mas as nossas críticas em relação à política de cotas raciais partem de um anti-racismo que se espanta com a forte correlação entre cor escura e pobreza, e que se revolta perante o preconceito e a discriminação, velados ou não, que contribuem para tal desigualdade. Um anti-racismo que percebe com toda clareza que a discriminação e o preconceito derivam das representações sociais que hierarquizam entidades denominadas ¿raças¿. Por isso, nos sentimos na obrigação de lutar contra essas representações, uma vez que é a persistência delas que possibilita a continuidade da discriminação e, portanto, da desigualdade.

O debate sobre as cotas é um debate sobre o Brasil. O que está em pauta são dois projetos de combate ao racismo: um pela via do fortalecimento das identidades ¿raciais¿ e, em última análise, do ¿genocídio¿ dos ¿pardos¿, ¿caboclos¿, ¿morenos¿ etc.; outro pela via do anti-racismo que procura concentrar esforços na diminuição das diferenças de classe e em uma luta contínua contra as representações negativas atribuídas às pessoas mais escuras. Esses projetos também são projetos distintos de nação. Um é o ovo de serpente de uma nação pautada em diferenças ¿étnicas/raciais¿. O outro aposta em uma nação de cidadãos iguais quanto a direitos, independentemente de ¿raça¿, ¿etnia¿, gênero, orientação sexual, etc., salvaguardando o direito de cada indivíduo a seguir o estilo de vida que melhor lhe convier. Enfim, argumentamos que não se pode acabar com o racismo com uma política que entroniza a ¿raça¿. Quando o Estado legisla sobre esta matéria ele funda a ¿raça¿, cria justamente aquilo que quer ver destruído. Merecemos melhor solução para os graves problemas que nos assolam.

PETER FRY E YVONNE MAGGIE são professores do Departamento de Antropologia Cultural IFC/UFRJ.