Título: PREMONIÇÕES & PESADELOS
Autor: Roberto da Matta
Fonte: O Globo, 12/04/2006, OPINIÃO, p. 7

Para Roberto Pompeu de Toledo Numa dessas noites, uma força, uma voz que somente eu podia escutar, comandava que escrevesse. Submerso num estado de profunda consciência inconsciente, gravei o texto que segue: ¿Estamos no Brasil do Futuro. Os jornais louvam mais um aniversário do que antigamente foi o Partido dos Trabalhadores e atualmente é o Partido do Povo Nacional, agremiação majoritária cujos membros ocupam os principais cargos no governo e na outrora chamada `sociedade civil¿, expressão hoje ofensiva e em desuso por suas origens anti-revolucionárias. Nessa data extraordinária, rememora-se, como manda o figurino dos aniversários, o sombrio período de passagem que culminou com a reeleição do presidente Lula na última disputa burguesa e neoliberal (palavra hoje banida pela patriótica Lei Aldo), o que liquidou ¿ graças ao movimento `esquerda, volver!¿ deflagrado pelo hoje Hiperministro e Herói Nacional, o ex-chefe da Casa Civil, ex-capitão do time e ex-guerrilheiro, José Dirceu ¿ com as imoralidades dos pleitos viciados pela compra de voto e campanhas milionárias. Agora, as campanhas estão moralizadas e suas motivações são saudável e exclusivamente políticas, visando ao bem do povo, dos pobres e dos famintos. Os órgãos da imprensa, sabiamente conduzidos por conselhos populares que monitoram seus antigos exageros e desejo implícito ou explícito de promover uma inconseqüente e antipatriótica desestabilização política, finalmente concordaram com o atual Ministro da Propaganda Ética, Tarso Genro, e compreendem voluntariamente que o então chamado `escândalo do mensalão¿, atribuído ao antigo Partido dos Trabalhadores, jamais existiu. O consenso popular e real é de que o PT, sendo aprendiz no poder, não soube copiar as regulares e cotidianas ¿ `sistêmicas¿, essa é em moda ¿ práticas de arrecadar recursos realizadas por todos os partidos daquela época mas, sobretudo, pelo antigo PSDB, o partido dos sócios demoníacos do grande diabão, o vendilhão da pátria e do caos liberal, FHC. A absolvição, ou a mais do que justa reabilitação moral de todos os envolvidos no que se supunha ser uma indecência, mas era simplesmente um golpe político dos mais baixos, cometido pela maquinação imoral de uma imprensa golpista, mancomunada com os partidos da oposição e com uma felizmente exterminada `direita¿, nada mais foi do que o estabelecimento da `verdade dos fatos¿, com a supressão dos exageros, das calúnias e de provas falsas contra os nossos Heróis Nacionais, os que hoje ocupam o Panteão dos Supertupiniquins, como os deputados José Mentor, João Magno, Paulo Rocha, Professor Luizinho, Luiz Paulo Cunha e José Genoino. A dança da vitória, brilhantemente inventada pela deputada Ângela Guadagnin, é hoje um ínclito ritual estabelecido no Congresso Nacional que a pratica todas as vezes em que há um triunfo da ambigüidade; ou quando recebe a visita de um irmãozinho presidente latino-americano para celebrar mais uma aliança contra esse inimigo nº 1 do povo, o mercado. Foi igualmente importante a decisão do Congresso Nacional de dissolver ab ovo a sua Comissão de Ética e outros órgãos mistificadores das condutas dos eleitos, pois, como são seres especiais, chegou-se à conclusão de que eles não devem nada a ninguém, nem a eles mesmos. E para que ninguém se esqueça disso, nomeou-se como Corregedor Perpétuo o destemido deputado Jorge Bittar. Ademais, um pacote de medidas básicas foi também tomada para o bem `deste país¿. Temos agora a Polícia Federalíssima: a Polícia Federal da Polícia Federal. Um avassalador movimento popular transformou o Supremo Tribunal Federal em partido político. Foi finalmente promulgado algo que já existia mas só por recato coletivo não era reconhecido: o Governo dos Traficantes para o Rio de Janeiro. Com uma administração criadora de empregos e microempresas, dotada de métodos tão incisivos quanto populares-democráticos de gerenciamento e resolução de disputa; e talentosíssimos no que diz respeito à educação de adolescentes, o GTRJ liquidou com a violência na cidade. Mas a transformação que finalmente resolveu todos os problemas nacionais, trazendo a tão desejada normalidade, foi a supressão do princípio da isonomia: aquela regra imbecil que a direita e os do contra invocavam tão despudoradamente e que decretava, sem nenhuma base empírica, ou, pior que isso, familística ou partidária (os dois no Brasil de hoje são a mesma coisa), que todos eram iguais perante a lei. Com o enterro da isonomia e da igualdade, o sistema finalmente chegou à sua tão sonhada coerência, pois agora mentira é verdade, a falta de limites é o limite e não ter nenhuma ética é ético e `legal¿, como diz o povo, brindando com seus copos de leite na mão.¿