Título: O seculão é invisível
Autor: CRISTOVAM BUARQUE
Fonte: O Globo, 15/04/2006, Opiniao, p. 7

Nestes últimos dias, o Brasil parece ter três unanimidades: a existência do mensalão; a falta de investimentos em educação como principal causa de nossa desigualdade e atraso; a recusa de tirar recursos de outra área para cobrir o déficit na educação.

Em 2004, estive na Irlanda para ver como esse país tinha dado o salto educacional que lhe permitiu deixar de ser um dos mais atrasados da Europa para se tornar um dos mais avançados do mundo. Em 1973, após dias de discussões, os partidos políticos irlandeses concordaram em se unir em torno de um projeto nacional pela educação, em reunião realizada na cidade de Cork. Quando quis visitar o lugar dessa reunião, nosso embaixador em Dublin, Stélio Amarante, disse-me que não teríamos tempo.

Mostrei no mapa que não havia nada distante naquele país, mas ele disse que seriam necessárias seis horas de viagem. Inconformado, disse que era impossível que um país com tanta educação tivesse estradas ruins. Ele respondeu: ¿É exatamente por isso.¿ Explicou que para fazer os investimentos necessários em educação, ciência e tecnologia, a Irlanda tinha adiado a aplicação de recursos nas estradas. Agora, que já é um país educado e produtor de ciência e tecnologia para todo o mundo, a Irlanda começa a implantar seu projeto de rodovias. Em poucos anos, a viagem entre Dublin e Cork demorará apenas duas horas. Atualmente, ainda são necessárias seis.

No Brasil, há unanimidade em favor da educação. Mas dificilmente os partidos aceitariam um pacto que retirasse dinheiro das estradas, ou do lucro dos bancos, ou dos juros, ou das deduções do Imposto de Renda, ou do alto custo de manutenção do Congresso ou da Justiça, ou dos subsídios à indústria e à agricultura, ou dos gastos estatais com publicidade, viagens, consultorias. Porque ao lado da unanimidade pela educação há uma unanimidade para que ninguém perca qualquer de seus benefícios.

Há unanimidade sobre o fato de que foi pago um mensalão para que deputados votassem com o governo nos últimos anos, mas ninguém quer reorientar as prioridades com as quais há séculos o setor público brasileiro canaliza seus recursos para atender à demanda dos que têm acesso ao poder, ignorando as necessidades de longo prazo de todo o povo brasileiro. Ao longo da nossa história, transferimos uma imensa quantidade de recursos nacionais àqueles com poder de influir sobre o poder público: é o seculão. O Brasil está contra o mensalão, mas aceita tranqüilamente o seculão.

No imaginário brasileiro, a educação é, no máximo, um meio para o sucesso financeiro. Mesmo aqueles que investem na educação dos filhos têm em mente o futuro salário que eles terão, não o fato de que sejam educados. Além disso, a sociedade brasileira não tem uma visão de conjunto. Está dividida em corporações que lutam entre si para se apropriarem do máximo da renda nacional e dos benefícios públicos. E sem uma visão de conjunto, não tem visão de longo prazo. O egoísmo e o imediatismo impedem que os partidos se unam em busca de um projeto nacional, de resultados distantes 20 ou 30 anos no futuro.

Por isso, o seculão é invisível, e seqüestra o Brasil. Enquanto isso, assistimos descontentes à nossa lenta marcha. Regredimos no cenário mundial, mesmo quando damos alguns pequenos saltos, por falta de decisão de mudar o rumo e acelerar, porque isso exigiria sacrifícios de alguns grupos em benefício do conjunto e do futuro da nação. Aceitamos a continuação do seculão porque somos beneficiários dele.

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).