Título: FICÇÃO E REALIDADE
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Globo, 17/04/2006, OPINIÃO, p. 7

Com os resultados da CPI dos Correios e a denúncia oferecida pelo Ministério Público, fica ainda mais difícil para o PT sustentar o discurso de que toda a corrupção sistêmica por ele introduzida é um caso banal de caixa dois. Os termos do Ministério Público foram contundentes por tratar de ¿organização criminosa¿ a ¿equipe¿ instalada no governo federal com suas ramificações partidárias na Câmara dos Deputados. O país teria sido tomado de assalto por uma quadrilha que usou e abusou da corrupção, tentando escudar-se numa pretensa defesa da ¿mudança social¿, que seria empreendida por um partido comprometido com a ética na política. Não obstante a sucessão de provas, mostrando o enraizamento da corrupção partidária em todo o aparelho do Estado, os líderes partidários optaram pela esquizofrenia. O dito núcleo ¿duro¿ do partido foi desaparecendo, entrando em seu lugar uma outra equipe, que não tem com o Presidente a mesma afinidade que tinha a anterior. Na área econômica, entrou um segundo time que provavelmente não terá condições de enfrentar uma forte crise internacional, caso essa sobrevenha. Na área política, a radicalização em termos de discurso mostra que o PT e o governo nada aprenderam com a sua experiência. Os novos dirigentes governamentais e partidários vivem nas nuvens das palavras, enredando-se nestas e tropeçando em suas iniciativas. Não há dia que passe sem que os atuais dirigentes não falem da ausência de corrupção, do comprometimento do partido com a ética e da pureza de suas intenções contra os que querem impedir a continuação das grandes ¿mudanças¿ introduzidas pelo atual governo. É como se o mundo real não os afetasse, pois, no seu mundo, tudo é claro: os agentes da mudança travam uma brava luta contra os ¿conservadores¿ que querem impedir que o país siga o seu curso inovador! A realidade, no entanto, é tenaz. O resultado da CPI dos Correios é contundente: o ¿mensalão¿ existiu. A denúncia do Ministério Público é claríssima: o ¿mensalão¿ existiu e foi instituído e estruturado por uma ¿organização criminosa¿. Os dirigentes partidários, quando, nas beiradas de suas falas, ousam reconhecer o que fizeram falam de ¿erros¿ e ¿desvios¿ eventualmente cometidos. A CPI e o Ministério público falam de ¿crimes¿ e de ¿corrupção ativa e passiva¿, além de ¿formação de quadrilha¿. Dois mundos se confrontam: o do partido que se refugia em suas concepções históricas, ao arrepio de qualquer confronto com realidade, situando-se no ¿caminho do socialismo¿, com um olho nas palavras de ordem e outro em Chávez e Cuba, e o das instituições que teimam em se consolidar, apesar das tentativas empreendidas de seu enfraquecimento. Está-se criando uma situação em que se afirma uma dissociação entre petismo e moralidade. Se o cidadão possuir convicções morais, não será petista. Se for petista, abandonará essas convicções morais se as tiver. Não se trata de uma questão política nem ideológica, mas simplesmente de decência. Se uma determinada pessoa quiser guardar a sua opção política, poderá migrar para o PSol, cujos parlamentares têm sido impecáveis do ponto de vista da moralidade pública. Poderá migrar para o PPS, cujos parlamentares e dirigentes têm mostrado uma conduta exemplar. Poderá efetuar o mesmo movimento rumo ao PDT. Enquanto isto, com habilidade, o presidente Lula continua navegando em outro mundo ¿ o de seu carisma e de seu pretenso afastamento da corrupção do seu governo que, logo, é sua. A sua alternativa reside no populismo econômico e no político. O primeiro está se acentuando com o aumento dos gastos correntes do Estado, os programas assistencialistas, o atendimento de determinados setores e o aumento do salário-mínimo para além do proposto pelo Ministério da Fazenda. O segundo se faz presente em sua relação cada vez mais direta com as massas e no uso abusivo de uma linguagem ¿quase-lógica¿, ilógica para letrados, porém ¿lógica¿ para os iletrados que formam a sua maior base de apoio. Se os eleitores desse país optarem novamente por Lula, estarão dando um salto no escuro. Sempre se poderá dizer que os ¿culpados¿ foram de certa maneira punidos, pois foram obrigados a deixar o governo. Ficará, no entanto, o sabor amargo de que, para a ¿organização¿, o crime compensa.

DENIS LERRER ROSENFIELD é professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.