Título: A DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA NAS ESCOLAS DO RIO
Autor: STELA CAPUTO
Fonte: O Globo, 14/04/2006, Opinião, p. 7

Ricardo Nery tem 17 anos e foi ¿apontado¿ ogã aos dois anos de idade. Ou seja, desde então, entre outras tarefas, Ricardo é responsável por tocar os atabaques e convocar os orixás. Paula Esteves tem 19 anos, foi iniciada no candomblé aos dois anos. Assim como essas, milhares de outras crianças e adolescentes freqüentam terreiros de candomblé no Rio de Janeiro. Todas possuem pelo menos duas coisas em comum. A primeira é o amor, o orgulho e o respeito ao candomblé, religião afro-descendente que cultua os orixás. A segunda é que a quase totalidade delas é discriminada na escola. Joyce Eloi dos Santos, por exemplo, aos 13 anos dizia: ¿Tenho orgulho de minha religião, mas na escola não entro com meus colares e digo que sou católica para não ser discriminada.¿

O problema da discriminação religiosa sofrida por praticantes do candomblé, incluindo crianças adeptas, é antigo, mas, com certeza, foi agravado quando, em setembro de 2000, em franco desacordo com a Lei de Diretrizes e Bases (que não prevê o ensino religioso confessional), o Rio de Janeiro implantou a Lei 3.459 e estabeleceu o ensino religioso confessional nas escolas. Em janeiro de 2004 foi realizado concurso público e 500 professores foram contratados, incorporando-se aos 364 professores que já lecionavam educação religiosa. De acordo com a Coordenação de Ensino Religioso do Rio, dos aprovados, 68,2% são católicos, 26,31% evangélicos (de diversas designações) e 5,26% de ¿outras religiões¿. Neste último grupo estão cinco professores de umbanda, três do espiritismo segundo Alan Kardek, três messiânicos e um professor mórmon. Para explicar por que o candomblé ficou de fora, o órgão informa que não tem registro de alunos que praticam candomblé.

Ensino ou conversão? ¿ Há 13 anos pesquiso crianças que praticam candomblé no Rio de Janeiro e sei o quanto o aprendizado nos terreiros de candomblé pode dizer a uma educação multicultural. O convívio com os orixás elabora uma vivência singular entre o sagrado e o humano, entre a natureza e a sociedade, entre adultos e crianças, entre a tradição e a modernidade (ou pós-modernidade), entre a vida e a morte. Crescer em um terreiro de candomblé é aprender a conviver com as múltiplas diferenças e partilhar, com isso, uma nova perspectiva de educação, anti-racista e plural. Há muito a escola perde essa experiência porque é longa a sua prática de silenciar culturas não-hegemônicas. A Coordenação de Ensino Religioso do Rio diz que a meta é que professores católicos ensinem a alunos católicos e evangélicos a evangélicos, por isso o ensino é confessional. O que a escola ganha com essa segregação? Defendo radicalmente uma escola laica, mas, se o Estado resolveu colocar a religião nas escolas, por que os alunos não podem ser estimulados a falar de suas diferentes percepções de mundo? Isso, inclusive, poderia ser feito em outras disciplinas e não necessariamente em uma aula de religião. Noam de Oxalá, 14 anos, ogã do terreiro de Mãe Beata, em Miguel Couto, por exemplo, disse-me que quem criou o mundo foi Olodumaré, mas, na escola, diz o menino, ensinam que foi ¿o Deus das Igrejas¿. Por que a escola inclui algumas narrativas e por que exclui outras? Por que temer a multiplicidade que nos constituí?

Entrevistei 12 professores de ensino religioso e a maioria afirma utilizar trechos da Bíblia em suas disciplinas. ¿Sei que tenho alunos de candomblé, mas, como são minoria, utilizo o que encontro de comum para católicos e evangélicos¿, revelou uma professora, que também disse utilizar textos do Padre Marcelo Rossi. Uma outra educadora, em cuja escola se reza diariamente o Pai-Nosso, nega que o objetivo da lei seja converter alunos, mas revela: ¿No passado eu tinha uns oito alunos que eram ogãs, mas acabaram entendendo que estavam errados e hoje são cristãos¿, comemora. Quem dá a esta professora o direito de dizer, em sala de aula, que ser um ogã é errado? Ensinar sempre foi uma questão de poder e dizer o que fala e o que cala na escola é uma questão de poder. O Estado do Rio de Janeiro também desafia a Constituição Federal que determina um Estado laico, separado das Igrejas. Oficializa a discriminação religiosa e racial porque, mesmo que crianças brancas pratiquem candomblé, a religião dos orixás é parte fundamental das culturas afro-descendentes. E, ainda, despreza e sabota o esforço que milhares de educadores e educadoras fazem na busca por uma educação multicultural que respeite e celebre a diversidade desse país.

STELA CAPUTO é jornalista e professora.