Título: A LUTA DAS MUITAS NACIONALIDADES DA ESPANHA
Autor: Priscila Guilayn
Fonte: O Globo, 16/04/2006, O Mundo, p. 33

Comunidades autônomas buscam maior independência e autogoverno, mas sem deixar de fazer parte do país

MADRI. ¿Café para todos.¿ Com esta frase o então ministro espanhol das Regiões pedia, em 1977, que a Andaluzia tivesse o mesmo grau de autonomia que as chamadas ¿nacionalidades históricas¿ ¿ País Basco, Catalunha e Galícia ¿, reconhecidas como tal pela Constituição promulgada um ano mais tarde. Três décadas depois da morte do ditador Francisco Franco, quando começou o processo de transição democrática, os nacionalismos continuam marcando a pauta política do país. Mas, agora, com passos que demonstram uma maior abertura para as negociações. Os Estatutos, que regulam a concessão de competências de algumas comunidades autônomas que se autodefinem como ¿uma nação dentro de uma nação¿, estão sendo revistos. E o terrorismo político do grupo separatista basco ETA parece que chega ao começo do seu fim.

¿ Um dos problemas históricos da Espanha é a acomodação de várias nações ou nacionalidades em um mesmo Estado. Devemos partir da idéia de que a Espanha é um Estado plurinacional, onde convivem diferentes culturas e nações, cujo desejo das pessoas é seguir formando parte do Estado mas tendo seu autogoverno e podendo tomar decisões sobre assuntos que lhes concernem ¿ resume o alemão Ludger Mees, vice-reitor da Universidade do País Basco e catedrático de História Contemporânea, que vive na Espanha há mais de 20 anos.

Zapatero: primeiro a paz, depois a política

O ETA, expressão nacionalista mais radical na Espanha, resolveu deixar as armas de lado e mostrar-se aberto às conversações. Em março, depois de 38 anos e 817 assassinatos, o ETA decretou um ¿cessar-fogo permanente¿, mas não incondicional: pede ¿diálogo, negociação e acordo¿ para alcançar a autodeterminação do Euskal Herria ¿ cuja tradução do euskera, idioma basco, é ¿povo basco¿ e compreende País Basco (Guipúzcoa, Biscaia, Álava); Navarra; além de três províncias em território francês (Basse Navarre, Labourd e Soule).

O presidente do governo espanhol, o socialista José Luis Rodríguez Zapatero, estabeleceu um prazo até junho para certificar-se de que a trégua significa realmente o fim da violência. Passado este período, Zapatero comparecerá ao Congresso para pedir autorização para iniciar um diálogo com o ETA. Embora tenha tido, esta semana, sua primeira reunião pós-trégua com o presidente basco, o nacionalista moderado Juan José Ibarretxe, Zapatero deixou claro que só conversará sobre política basca quando chegar o verão: ¿Agora é o momento da paz, mais adiante virá a política.¿

¿ Dentro dos nacionalismos existem setores bem variados. No basco, por exemplo, existe o totalitarismo e a violência do ETA, mas também existe outro nacionalismo, de longa trajetória histórica e democrática. Os nacionalismos não têm porque serem, necessariamente, desagregadores ¿ explica Ludger Mees. ¿ Não reconhecer as diferenças culturais e históricas e não querer negociar é que seria uma atitude desagregadora.

Enquanto junho não chega, algumas manifestações nacionalistas tentam apressar as ansiadas negociações. No dia 1º de abril, cerca de 80 mil pessoas tomaram as ruas de Bilbao, capital de Biscaia, numa passeata reivindicando a autodeterminação e a anistia aos 544 integrantes do ETA em presídios espanhóis. Por outro lado, a Justiça proibiu que o partido nacionalista radical Batasuna celebrasse uma homenagem, no dia 9, a três membros de sua direção que estão presos. Durante o ato, que deveria realizar-se na capital guipuzcoana, San Sebastián, o Batasuna deveria apresentar seu novo diretório nacional. O partido foi tornado ilegal por ser considerado braço político do ETA e espera, com o cessar-fogo, poder voltar à legalidade e participar das próximas eleições sem mudar seu nome.

ETA à parte, os nacionalismos não-violentos vão conseguindo mais reconhecimento através da reforma de seus Estatutos. A primeira comunidade autônoma a ter as leis orgânicas revistas foi a valenciana. O novo Estatuto ¿ aprovado pelo Congresso e que deverá ser votado pelo Senado no próximo dia 25 de abril ¿ cria o sistema tributário valenciano; dá à região a possibilidade de dissolver suas próprias cortes (como já acontece em Catalunha, País Basco, Galícia e Andaluzia); e cria oficialmente a ¿nacionalidade histórica¿.

Processo de revisão pelos próximos anos

Embora a aprovação tenha sido consensual, o novo Estatuto valenciano não ficou isento de polêmicas. A cláusula Camps (sobrenome do presidente valenciano, Francisco Camps) estabelece a obrigação de atualizar o Estatuto perante qualquer ampliação de competências de outra comunidade autônoma.

¿ As novas situações geram discussões e reformas. Isso está acontecendo agora e durante alguns anos estaremos assistindo a esse processo de revisão. Mas o que está em questão é: somos capazes de admitir que na Espanha há realidades, trajetórias históricas, situações culturais e políticas diferentes e, portanto, o que vale para Barcelona não tem que ser válido necessariamente para Valência? ¿ pergunta Ludger Mees.

A Catalunha, que teve seu projeto de revisão estatutária anterior rechaçado pelas cortes em 2005, foi a segunda comunidade a ter, no dia 30 de março, seu novo, e menos polêmico, Estatuto aprovado pelo Congresso. Diferentemente do caso valenciano, não houve consenso. Os dois partidos que representam posturas políticas extremas ¿ o conservador Partido Popular e o nacionalista Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), republicano e de esquerda ¿ votaram contra. De acordo com o novo Estatuto, a Catalunha continua sendo considerada ¿nacionalidade¿ e não ¿nação¿.

¿ O novo Estatuto está insuficiente em dois pontos. Primeiro: o reconhecimento, que deveria ser mais explícito, da identidade catalã, de sua definição como nação. Não é um problema de terminologia, e sim relacionado com uma certa soberania financeira. Às vezes, as pessoas reagem como se nós, catalães, estivéssemos falando de algo abstrato, mas não é. O segundo ponto é o financiamento, pois pedíamos um maior autogoverno sobre os recursos fiscais gerados na Catalunha ¿ defende Antoni Segura, catedrático de História Contemporânea da Universidade de Barcelona.