Título: A PROPÓSITO DE JUDAS
Autor: ROBERTO DaMATTA
Fonte: O Globo, 19/04/2006, Opinião, p. 7

Asemana passada teve como centro uma figura que ronda a nossa história cultural, religiosa e política: o velho e cada vez mais onipresente Judas. No universo luso-brasileiro, os judas não têm a visibilidade das Nossas Senhoras e dos santos cuja representação chega aos milhares, sendo cultuados e invocados nas casas e ruas, nas rotinas e nos momentos extraordinários, quando restituem a fé dos seus devotos com infalíveis graças e milagres.

Ao contrário da Virgem e dos santos que promovem a grande conjunção entre vivos e mortos ou, como diz o grande historiador da antiguidade Peter Brown, entre a tumba e o altar, pois a sua capacidade mediadora vem do fato de terem sido humanos como nós, mas homens e mulheres que ascenderam pelo martírio ou pela pureza imaculada à esfera divina, os judas exemplificam a irremissível iniqüidade da traição. Esse pecado maior numa sociedade fundada na honra e no favor. Num Brasil cujo tecido social se baseia na competição e em leis que valem para todos, mas também, e sobretudo, na interdependência entre superiores e inferiores. Aqueles oferecendo casa, visibilidade (¿boa aparência¿) e trabalho-com-proteção; estes entregando uma disponibilidade perene e irrestrita no que se traduz como lealdade e dedicação: uma aguçada consciência de posição social, de conhecer o seu lugar. Se, então, os judas não são modelos de ações positivas dentro de nosso universo ainda largamente patronal e baseado na reciprocidade pura do ¿dou para receber¿, como fazem prova o mensalão e o nepotismo, sua presença negativa é essencial, revelando o gesto proibido, o ato que vai além do crime, sendo um tabu e um pecado.

O que, então, simboliza esse Judas de nome confusamente plural, como a indicar que a sua traição ¿ o ato de entregar o amigo ao inimigo, a decisão de se deixar dominar pela duplicidade moral ¿ tem muitos seguidores?

Tomando o Brasil como base, dir-se-ia que o interesse pelo Judas fala de uma abominação moral. Judas foi, afinal de contas, o primeiro estelionatário deste nosso mundo cristão. Além de ter desonrado a amizade com Cristo, rompendo um tabu e cometendo um pecado sem remissão, ele também desfrutou vantagens monetárias (e políticas) por meio da fraude, da mentira e do comportamento mascarado. Disso decorre a sua imundície, como afirmou o Papa Bento XVI. Judas Iscariotes, com a sua Caixa 2, foi um estelionatário bíblico e, por isso, sua figura tem tanta presença e desperta tanta atenção entre nós.

Esse traidor de Cristo surge concretamente no final da Semana Santa, quando as trevas da sexta-feira dão lugar ao milagre da Ressurreição e de um retorno à normalidade no sábado de Aleluia. Dia em que se tomava consciência da suspensão dos tabus da Quaresma, porque se voltava a comer carne e se celebrava o ritual carnavalesco da Malhação do Judas.

Neste rito, Judas surge como um boneco de pano freqüentemente engravatado, cuja passividade marcava a passagem do homem ardiloso e rápido para a vítima sacrificial inativa, inteiramente nas mãos dos seus alegres algozes. Aliás, é preciso remarcar que esse Judas é um judeu por etnia como foi Cristo, mas sua figura ritual nada tem de judeu. Pois o dado englobante de sua simbologia não é o povo judeu, mas a figura universal do traidor que, por trinta moedas, entregou Cristo às autoridades romanas. Neste sentido, esse Judas se parece muito mais com os ricos e com os políticos locais, estaduais e federais ¿ lidos na ocasião do ritual como ¿judas¿ ou traidores do povo ¿ do que como um representante de um grupo étnico particular. Os nazistas modernos que tinham um plano científico de purificação racial queimaram os judeus; a tradição católica luso-brasileira queima a imagem de um traidor, esse ser que existe independentemente de credo, nacionalidade, ¿raça¿, estado social e, estamos descobrindo a duras penas no Brasil, partido politico.

De fato, a Malhação do Judas tem duas etapas. À morte simbólica violenta segue-se um segundo tempo igualmente essencial. A leitura do seu testamento de ricaço sovina e de político corrupto, traidor dos seus eleitores, realizada com paradoxal solenidade carnavalesca por algum gaiato do grupo punitivo em versos de pé-quebrado que, nas entrelinhas, denunciam também as putas, os preguiçosos, os malandros e os cornos de uma vizinhança que rotineiramente se pensava como ordeira e pacata. A punição do Judas no sistema ibero-brasileiro não fala de sua etnia judaica, mas do seu gesto abominável e imundo.

Tanto que a tradição popular ibero-brasileira acaba o situando num lugar: num lendário Cu-de-Judas. Uma comunidade governada por meio da mentira e do segredo, esses irmãos gêmeos da traição e do estelionato político. Nos últimos anos, sem trocadilho, sabemos o quanto se tem tentado transformar o Brasil num Cu-de-Judas. Num lugar ordenado por aristocracias partidárias na qual é heróico ter um plano B e ser um e outro ao mesmo tempo. Num país governado por estelionatários profissionais, esses Judas que são hoje legião no mundo político brasileiro.

ROBERTO DaMATTA é antropólogo.