Título: A FACE BRANDA DE RATZINGER
Autor: Vera Gonçalves de Araújo
Fonte: O Globo, 20/04/2006, O Mundo, p. 29

Bento XVI celebra 1 ano de pontificado longe da imagem de rigidez que o perseguia

Um pastor brando e firme: assim se definiu Bento XVI ao comemorar ontem na Praça de São Pedro o primeiro aniversário de seu pontificado. O Papa evita o adjetivo ¿bom¿, que o irrita profundamente, segundo o cardeal Tarcisio Bertone, que foi o principal colaborador do cardeal Joseph Ratzinger. Mas ninguém esperava um papa brando quando Bento XVI foi eleito. Os conservadores da Igreja apostavam num pontífice agressivo e intransigente. Este era o receio também dos progressistas. Firme, sim, mas brando, ninguém diria. A expectativa geral tem sido negada pelos fatos. Os vaticanistas resumem assim seu primeiro ano: pouca política e muita teologia.

Jamais alguém poderá acusar Bento XVI de ser excessivamente carismático. Ele sempre preferiu estudar e redigir homilias, e nunca apreciou apresentações espetaculares para multidões, no estilo de seu antecessor. Ontem, porém, diante de 60 mil fiéis que o aplaudiam, comentou:

¿ Como o tempo voa. Um ano já se passou desde que os cardeais no conclave, numa decisão totalmente inesperada e surpreendente para mim, resolveram escolher meu humilde ser para suceder o amado servo de Deus, o grande João Paulo II. Peço a todos vocês que continuem a me apoiar, rezando a Deus para que Ele me permita ser um pastor brando e firme para essa Igreja.

Em um ano de pontificado, o Papa decepcionou amigos conservadores e não conquistou seus críticos progressistas. Deu início, com cautela, a uma lenta mudança de estilo papal. Recentemente, foi definido como um papa minimalista, que procura afastar da sua figura de líder as luzes da ribalta para pô-las sobre a Igreja. Daí seu discreto programa de aparições e viagens, a agenda pobre de encontros com visitantes, e rica de horas para estudar e escrever, deixando poucos documentos e decisões a sua equipe.

João Paulo II dedicava pouco tempo e preocupação aos negócios internos do Vaticano, preferindo um evangelismo viajante e dando grande atenção à mídia. Bento XVI, segundo vaticanistas, é um administrador mais atento e presente na Santa Sé. Não houve ¿ como muitos previam e temiam ¿ uma ¿limpeza¿ na Cúria romana. Nenhum dos seus antigos desafetos foi mandado embora. A única operação lançada até agora foi de revalorização dos aspectos mais tradicionais do papado, em nome da identidade católica num Ocidente cada vez mais secularizado e ateu. Para o filósofo Emanuele Severino, o Papa é um verdadeiro intelectual:

¿ Falar hoje de um papa tem também um forte significado político. Vejam o impacto que as religiões têm na vida dos povos. Acho interessante vê-lo oscilar entre o requinte aristocrático do Ratzinger teólogo e filósofo e a simplicidade de Bento XVI.

Durante 23 anos, o cardeal alemão foi chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira dos tribunais de Inquisição. Sua batalha contra a Teologia da Libertação confirmou a fama de conservador. Muitos achavam que combateria dissidentes, mas o único sinal evidente da sua imagem tradicionalista é a prioridade que deu ao retorno à Igreja de Roma da ultraconservadora Sociedade de São Pio X, criada pelo arcebispo Marcel Lefebvre. O primeiro documento que assinou agradaria a Lefebvre: homens com ¿arraigadas tendências homossexuais¿ não podem ser sacerdotes, declarou o Papa. Mas outros episódios demonstram uma visão arejada. Sua primeira encíclica foi dedicada ao amor humano.