Título: E tudo acabou numa grande tragédia social
Autor: RUY BARRETO
Fonte: O Globo, 21/04/2006, Opinião, p. 7

APrincesa Isabel pegou um trem e deixou Petrópolis às pressas para acabar no Rio de Janeiro com a escravatura no Brasil. Às 15h15m de domingo, 13 de maio de 1888, no Paço da Cidade, ela assinou a lei ¿ transcrita num fino pergaminho por um calígrafo famoso ¿ com uma pena de ouro adquirida por subscrição popular. Nas ruas, o povo aclamava a Lei Áurea e a Princesa, as festas se sucediam nas casas e no palácio. Da Europa vinha um telegrama: ¿Abraços à Redentora. Seu Pai, Pedro.¿

Todos ansiavam pela Abolição e o momento estava maduro. Mas poucos se deram conta ¿ e os livros de História não contam ¿ de que, por trás daquele gesto magnânimo, concluía-se um dos mais hábeis golpes políticos. Um ano e meio depois, naquela mesma praça do Paço, era proclamada a República. A ¿Redentora¿ ¿ com o marido, Conde d¿Eu, e o pai, D. Pedro II, velho e doente ¿ era embarcada de novo às pressas, desta vez num navio, para fora do país, para sempre, sem ninguém no cais para lhe dar adeus.

Não foi apenas a Monarquia que caiu em decorrência do 13 de maio. No ¿efeito-dominó¿ da Abolição, foram terrivelmente golpeadas as economias fluminense, mineira e capixaba, baseadas na cafeicultura, que representavam cerca de 90% da produção nacional. Todo mundo sabia que a escravatura estava para acabar. O problema crucial era como encaminhar a transição e evitar um choque social e econômico. O Gabinete do Barão de Cotegipe, pensando numa data, tivera apresentado pelo próprio senador paulista Antônio do Prado ¿o projeto que virá a ser lei de 28/9/1888 (...) e o escravo só trabalhará até 25 de setembro...¿

Era uma data racional. Coincidia com o fim do período da colheita do café no país. No estado do Rio e na Zona da Mata de Minas Gerais, regiões mais quentes, o amadurecimento do café ocorria no início de maio; já em São Paulo a colheita começava em setembro. E representava apenas 10% da produção nacional. Este prazo permitiria a todos fazerem sua colheita, mesmo porque São Paulo não dependia da mão-de-obra do escravo negro, mas se servia da imigração européia, que, por desígnio expresso dos cafeicultores paulistas, só permitiam a vinda de gente inculta e faminta, que acabava recebendo aqui o mesmo tratamento do escravo africano, ou até pior.

Os abolicionistas eram a favor do término puro e simples da escravatura, e salve-se-quem-puder. Já os emancipacionistas achavam que a Abolição deveria ser acompanhada de uma indenização, prevista em lei. Assim, até a chegada da colheita seguinte, todos¿ escravos libertos e fazendeiros¿ teriam tempo para se adaptar ao novo regime de trabalho livre e tudo voltaria à normalidade.

A história do Brasil teria sido diferente ¿ para bem melhor. Mas isto não aconteceu. Inopinadamente, o senador Antônio do Prado, através de hábeis manobras, antecipou a Abolição para 13 de maio. Os cafeicultores fluminenses, totalmente desamparados sem mão-de-obra na hora da colheita, viram seus cafés apodrecerem (90% da produção nacional). Os ex-escravos, sem eira nem beira, descambaram para o alcoolismo, a prostituição e a miséria. O golpe de misericórdia foi dado por Rui Barbosa, ministro da Fazenda do primeiro governo da República. Em 1890, ele mandou recolher e incinerar toda a documentação existente sobre a propriedade de escravos no Brasil. O ¿maior jurisconsulto do país¿, numa autêntica queima de arquivo, tirava a base legal para quaisquer pedidos de indenização da parte dos fazendeiros. As suntuosas sedes dos barões do café algumas ficaram em ruínas, outras viraram pousadas com falsos móveis de época e senzalas redecoradas num duvidoso gosto sadomasoquista exibindo instrumentos de torturas dos escravos.

Em 1854, só o porto do Rio de Janeiro exportou, em apenas um ano, em café, o valor equivalente a todo o ouro e diamante extraído pelo Brasil durante 80 anos. O porto do Rio de Janeiro, o maior da América antes da Lei Áurea, tem hoje seus 22 imensos armazéns transformados em barracões para as escolas de samba. Não se pode dizer que tudo tenha acabado em samba, mas, na verdade, ao som de AR-15s e granadas, numa grande tragédia econômica e social.

RUY BARRETO é empresário.

N. da R.: Luiz Garcia volta a escrever neste espaço no próximo mês.