Título: Estrela brasileira
Autor: Míriam Leitao
Fonte: O Globo, 21/04/2006, Economia, p. 30

Sou variguista. Das companhias aéreas brasileiras, sempre me senti mais em casa num avião da Varig, o que significa que sei o sentimento dos que lamentam o doloroso definhar da companhia. Mas os cofres públicos não podem pagar o custo dos erros de gestão das empresas privadas. Várias vezes a Fundação Ruben Berta impediu qualquer processo de reestruturação da empresa, apostando na força do seu símbolo e na mística da sua estrela. Agora é tarde.

A Panam era um símbolo americano pousado num dos mais altos prédios de Nova York. Um dia quebrou e a marca da empresa foi retirada do prédio e substituída por outra placa, de um fundo de pensão, sem apelo, sem história. A vida é assim: empresas morrem. O presidente Lula, quando candidato, prometia resolver tudo com dinheiro público. Aprendeu que é impossível. Se colocar dinheiro na Varig, o governo teria que se explicar com Gol, Tam, BRA, Ocean Air e junto às falecidas Vasp e Transbrasil. Isso para citar só um dado da complexa questão.

Vai ser duro ficar sem a Varig. Quem voou nos últimos dias sentiu isso em aeroportos lotados e no atendimento dos concorrentes em colapso. A Gol, que entrou oferecendo preço baixo por um serviço sofrível, ficou só com o último atributo. As cenas são inacreditáveis: de comissário sendo treinado a bordo, diante dos passageiros; a aeromoça interrompendo o serviço para bater papo com amigas.

A Varig tem virtudes e ativos que se perderão para sempre quando ela deixar de voar. Uma cultura aeronáutica de 80 anos de uma fundadora da IATA. Um sistema de treinamento de classe mundial. O simulador de vôo que funciona no Galeão tem sido usado por companhias do mundo inteiro, depois do 11 de setembro, quando os EUA restringiram os treinamentos a estrangeiros. Ela tem um conhecimento de operação nos principais aeroportos do mundo que nenhuma companhia brasileira tem. Tudo isso se transformava em conforto para os clientes. Esperemos agora vôos piores, senhores passageiros. Alguma coisa se salvou com a venda da VarigLog e da VEM, duas boas empresas da Varig: seis mil empregos. A VEM é uma das cinco melhores empresas de manutenção do mundo.

Que o setor de transporte aéreo de passageiros passaria por uma reestruturação era fácil de ver. Há uma década, um estudo da McKinsey dizia que surgiria uma ou mais empresas de baixo custo no Brasil. A comparação que faziam entre os preços das passagens no país mostrava como era caro voar aqui e como o alto custo das passagens apequena o mercado que deveria ser maior dadas as enormes distâncias de um país continental.

Há dificuldades no mercado mundial de aviação, mas elas não explicam o colapso da Varig. O governo deve à empresa. Uma dívida discutível, mas que a Justiça tem considerado válida. A Varig alegou que perdeu receita com suas tarifas congeladas no Plano Cruzado. Mas não conta que também se beneficiou, pelo mesmo plano, de custos congelados, como o de combustível; nem descontou os lucros extraordinários que teve com as décadas de monopólio nos vôos internacionais. Nem o favorecimento pelo órgão regulador antigo, capturado pela empresa. Esta dívida é mais um esqueleto que nasceu das confusões entre o mundo jurídico e o econômico nos anos da nossa turbulência inflacionária. O assunto está no STJ, o governo ainda pode recorrer; em algum momento, terá que pagar. Aceita pagar, desde que se afastem os atuais controladores. Mesmo se pagasse hoje, cash e incondicionalmente, o dinheiro não seria suficiente nem para pagar ao próprio governo, seu maior credor.

É inevitável concluir que a Varig cavou seu próprio buraco. Cratera, aliás. Tem uma das mais complexas estruturas de governança corporativa num mundo em que a simplificação e a redução dos níveis hierárquicos salvou empresas em toda parte. Acima da diretoria há cinco níveis de poder e uma multidão de poderosos. Primeiro, um colégio deliberante, instância máxima, com 160 representantes dos acionistas; abaixo, a Fundação Ruben Berta; depois, o conselho curador; o conselho de administração, e, por fim, a diretoria. Ou seja, ninguém manda e todo mundo tira proveito. São conhecidos os casos de desperdício exuberante. Lembra do famoso caviar da Varig? Custava US$6 milhões por ano. Houve um momento em que tinha 50 aeromoças em Tóquio. Ela tem nove classes de avião com pilotos especializados em cada uma. Se o avião não voar, o piloto daquele tipo de avião não trabalha. O Jet Class que voava para Brasília, por exemplo, parou de ser usado e 156 pilotos ficaram dois anos sem trabalhar e qualquer tentativa de demiti-los era bloqueada. A empresa não tem plano de carreira. Os aumentos são dados de acordo com o poder que cada feudo tenha naquela intricada estrutura de poder. Os benefícios aos funcionários também são distribuídos assim, de forma aleatória.

A Varig tem um patrimônio líquido negativo de R$6 bilhões de reais. Ou seja, seus donos devem esse valor aos credores. São donos de uma dívida. Livrar-se desta dívida deveria ser o sonho destes acionistas. Mas eles recusaram, minaram e sabotaram todos os planos de salvação da empresa que passasse pelo afastamento dos controladores. Achavam que viria do céu um salvador que perdoaria todas as dívidas. Apostaram que o salvador seria Lula. E Lula está dizendo não.