Título: O EGOÍSMO NO BEM-ESTAR PESSOAL
Autor: D. EUGENIO SALES
Fonte: O Globo, 22/04/2006, Opiniao, p. 7

Recordo-me de que, há anos, como parte de uma campanha contra os freqüentes acidentes automobilísticos, estava nas ruas um imenso cartaz. Mostrava uma criança de olhar triste indicando a causa de sua orfandade e sofrimento: ¿Meu pai morreu na estrada.¿

Aquela fisionomia, marcada pela angústia, poderia ser multiplicada aos milhares também por outro motivo. São os filhos que sofreram alterações no lar, pela separação dos pais. A explicação não é a velocidade imprudente, mas, a miúde, é a busca egoísta de um bem-estar pessoal, acarretando a quebra de compromisso solenemente assumido. A conseqüência é a modificação na família e a amargura de corações inocentes rasgados pelos genitores que tomam direções opostas e substituem por outrem o cônjuge. Receberam a vida e lhes era ministrada a formação.

Como há desastres inevitáveis nas estradas, existem também casos dolorosos que arruínam ou impossibilitam a vida em comum. Utilizá-los como argumento que favoreça sua multiplicação pelo enfraquecimento da proteção legal e jurídica é pouco honesto.

Por vezes, a culpa é de um dos esposos que torna irrespirável o ambiente doméstico. As considerações que aqui faço se referem unicamente ao cônjuge que coloca seu bem-estar acima da comunidade-família a que pertence. Reconheço que nesses dramas há heróis que merecem as bênçãos de Deus.

O olhar triste da criança interrogava também a sociedade em que vivem muitos casais. Os valores espirituais devem ser o sustentáculo do lar e a preservação da família. Num meio social onde viver a moralidade ou a imoralidade pouco representa e no qual as transgressões à Lei de Deus são divulgadas para aplausos (se não fossem toleradas, ninguém ousaria sistematicamente trazê-las à publicidade), torna-se difícil a preservação de princípios, já, de sua natureza, não fáceis de serem observados.

Não nos enganemos alegando que os desregramentos sempre ocorreram na história da humanidade. A diferença está entre sua mera existência como falta e uma aprovação do erro. No primeiro caso, o recato já indica o reconhecimento do pecado. No entanto, as trocas de marido e mulher, as disponibilidades por essas uniões anunciadas e aceitas pelo meio ambiente significam a exaltação do mal.

A desagregação familiar provoca, igualmente, a expansão do crime. No dia 5 de janeiro de 1977, diante do presidente da República, em grande país europeu, referindo-se ao período de junho de 1975 a junho de 1976, um promotor público, oficialmente, atribuía o crescimento de 6% na criminalidade daquela nação à ¿desintegração dos valores morais e sociais tradicionais, à desintegração da família e ao aumento da obscenidade¿.

Uma visão deformada, encontradiça até mesmo entre pessoas religiosas, identifica a indissolubilidade do matrimônio com o amor conjugal; fundamenta-a ¿muito mais no vínculo afetivo do que em dispositivos civis e religiosos¿. O afeto no casamento, de suma importância, é garantia de estabilidade, mas, caso essa atração cesse, perdura o sacramento.

Apesar do sofrimento revelado no olhar de tantas crianças, conseqüência de lares desfeitos, conservemos um espírito de acolhimento também aos pais que sofrem com esse desajustamento. Ajudar o que erra e o que pena não significa aprovar a falta, mas revela a delicadeza da alma cristã. No entanto, evitemos o gesto ou a palavra que indique a predominância da sensibilidade sobre a verdade no julgamento desses casos.

Diante das dificuldades, não desanimar! O cristão é um inconformado com o mal. O mundo precisa dessa voz discordante. Ela pode se perder mas também ser o grito que acorda e salva. E a Igreja, por toda a parte, oferece sua ajuda através da Pastoral Familiar. Nestes dias, o Pontifício Conselho para as Famílias prepara a celebração do 25º aniversário de sua criação. Coordena e estimula as atividades em prol da Família uma Assembléia Plenária nos dias 11 a 13 de maio que será realizada em Roma. No mês de Julho próximo terá lugar em Valencia, Espanha, o V Encontro Mundial da Família. Recordemos que o II Encontro Mundial foi realizado aqui no Rio de Janeiro, em 1997, com representantes de 83 Nações e a presença do Santo Padre João Paulo II. O Pontífice nos ensina: ¿O futuro da humanidade passa pela família (...) compete ainda aos cristãos a tarefa de anunciar com alegria e convicção a `boa nova¿ acerca da Família¿ (¿Familiaris Consortio¿, Conclusão).

D. EUGENIO SALES é cardeal-arcebispo emérito da arquidiocese do Rio.

Às vezes, a culpa é de um esposo que torna irrespirável o ambiente doméstico