Título: A farra das milhas
Autor: Geralda Doca
Fonte: O Globo, 23/04/2006, Economia, p. 31

Programas de troca por passagem aérea se espalham na economia e atingem 8,6 milhões

Amilhagem, uma idéia que começou a ser explorada pelas companhias aéreas para cativar a clientela, virou uma estratégia de negócio em vários segmentos da economia no Brasil e no mundo e, hoje, não são as pessoas que viajam de avião as que mais se beneficiam, mas os consumidores. Estimativas apontam que mais da metade de todas as milhas é originada pelas compras pagas com cartão de crédito cuja bandeira é conveniada aos programas das companhias aéreas. Em seguida estão empresas telefônicas, hotéis, postos de combustíveis, restaurantes, locadores de automóveis, agentes imobiliários, seguradoras e lojas. Em 2005, as milhas renderam à Varig e à TAM R$235,8 milhões ¿ valor pago pelos cerca de 300 parceiros que oferecem esse tipo de compensação aos seus clientes.

Mesmo com o agravamento da crise, só em março, o Smiles gerou para a Varig receita de R$19,2 milhões. O programa tem 5,6 milhões de clientes cadastrados. Já o Fidelidade TAM tem outros três milhões de inscritos e uma receita média mensal de R$7 milhões para a companhia.

É um negócio que, se for bem administrado, gera ganhos para todos, diz o sócio da empresa de consultoria do setor aéreo Bain & Company, André Castellini. Segundo ele, o programa funciona como um canal de vendas para as companhias aéreas, que, na prática, vendem frações de uma passagem, e para o parceiro comercial, que vende mais ao oferecer milhas como recompensa.

Só 35% das milhas são resgatadas

Venâncio de Castro, diretor de Produtos da rede Mastercard, diz que a bandeira orienta os bancos a adotarem programas de milhas porque essa estratégia oferece vantagens competitivas ao produto. Segundo dados do setor, apenas 35% das milhas são de fato resgatadas, o que é levado em conta durante a negociação do valor da milha entre o banco e a companhia aérea. Além disso, os cartões atrelados aos programas de milhagem vendem três vezes mais do que um cartão comum.

¿ O cartão com milhas é uma ferramenta para venda, ativação (no caso de cartões enviados à revelia do cliente) e retenção (manutenção do cliente na sua carteira) para o banco ¿ afirma Castro, acrescentando que a classe média é o principal alvo dos cartões.

¿ Cerca de 80% dos nossos clientes trocam seus pontos por milhas ¿ diz o vice-presidente de Produtos do American Express, Cesário Nakamura.

O diretor de Marketing da rede Atlantica Hotels Internacional, Marcelo Bicudo, informou que as milhas geram um incremento de receitas para a marca de 15%. O faturamento no Brasil está em torno de R$200 milhões por ano. Quem se hospeda nos hotéis do grupo pode trocar seus pontos por milhas do Smiles, mas já está em fase adiantada de negociação uma parceria com a TAM. O investimento (valor pago pelo hotel por milha) é pequeno e equivale a um desconto de 5% do valor da diária, explicou.

¿ As milhas são uma ferramenta de relacionamento valiosa. É como colocar um chip no cliente, que permite identificar o hóspede habitual do esporádico e dar um tratamento especial ao primeiro ¿ diz Bicudo.

Segundo o diretor-presidente da rede Hilton Corporation, Luis Perillo, as milhas representam quase 70% das receitas do hotel do Morumbi, em São Paulo. O grupo tem parceria com o Smiles e também está negociando com a TAM. Na rede Sofitel, cada R$30 gastos geram dez pontos fidelidade TAM.

A ferramenta atraiu também a gigante Petrobras, que em outubro de 2005 lançou o cartão BR em todas as distribuidoras. Quem abastece no posto da estatal ganha milhas da Varig e concorre a um prêmio que garante um ano grátis de combustível.

Analista alerta para riscos do modelo

Foi este atrativo que levou o técnico em teleprocessamento Fabrício Lucas Correia a adquirir o cartão verde da BR.

¿ Procuro abastecer só no cartão para ganhar pontos ¿ afirma Correia, que ainda não acumulou milhas suficientes para fazer uma viagem.

As milhas ganharam adeptos em vários segmentos, de telefonia a restaurantes, passando por saúde e beleza. Na rede TGI Friday¿s, a cada real gasto na refeição o cliente acumula dois pontos que podem ser convertidos em milhas da TAM. O mesmo acontece com o Boticário, que tem um cartão fidelidade que acumula pontos e podem ser trocados por milhas ou produtos da loja. Na Avis, qualquer locação de veículo dá direito a 500 milhas pela Varig. Até corretoras oferecem milhas na compra de um apartamento em São Paulo.

O consultor Ulrich Michenhausen, da Active Marketing, alerta, porém, que o programa de milhas gera no futuro um passivo, que se mal administrado pode quebrar as empresas. Esse é um dos motivos pelos quais as companhias tentam dificultar ao máximo a conversão das milhas em bilhetes. A vantagem dos programas brasileiros, diz o consultor, é que as milhas têm prazo de validade (dois anos na TAM e três anos na Varig), o que permite gerir melhor o negócio. Essa não é uma regra comum nos programas oferecidos pelas empresas estrangeiras.